De acordo com um relatório de investigação do Centro de Integridade Pública (CIP), divulgado esta segunda-feira, num documento denominado “Política Nacional de Terras 2021 (linhas gerais)”, o Governo diz que pretende usar a terra para proteger a população mais pobre, mas não há evidências de que tal lei poderá beneficiar os cidadãos mais carenciados.
Mais adiante, o mesmo documento explica que falar de transmissão de terras é o mesmo que falar de transmissibilidade do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT). Porém, o sistema jurídico em vigor no país mostra que a transmissão só ocorre “por compra-e-venda, hipoteca, penhor, doação, direitos que incidem sobre a coisa e não a coisa em si (viatura, casa, terreno, etc.)”. Entretanto, a transmissibilidade encontra uma barreira no impedimento constitucional que estipula que a terra em Moçambique é propriedade do Estado e não pode ser vendida, hipotecada, penhorada ou por qualquer outra forma alienada. Assim, a Comissão de Revisão da Política de Terra está a propor que, embora seja uma propriedade do Estado, nada impeça que no futuro esse bem seja usado para hipotecas e transações.
“O Banco Mundial, a Confederação das Associações Económicas (CTA) e o Governo defendem que é preciso permitir transmissibilidade da terra como forma de passar a ter um valor comercial substancial, o que irá permitir que o cidadão que detém o DUAT o possa usar como moeda de troca para melhorar a sua condição, ou seja, que se um camponês tem 100 ou 1000 hectares possa transacioná-los a um privado sem qualquer conflito. Entretanto, ignoram-se os possíveis problemas que poderão surgir no Estado, tais como, a maior procura de terra pelos ricos e multinacionais, por um lado, e a tentação dos cidadãos pobres em vender as suas terras, por outro”, lê-se no documento.
De acordo com o estudo, com a revisão da Lei de Terra em curso, outro risco que se incorre é de que a mesma possa beneficiar as corporações internacionais e do sector empresarial nacional com maior capacidade financeira para aliciar, manipular e adquirir, para os seus investimentos, terras das comunidades com pouco conhecimento sobre o seu valor, a preços baixos enquanto o Estado está na expectativa de obter ganhos através dos impostos e das taxas resultantes das transações de títulos de DUAT e também das receitas provenientes de exploração de terra.
O documento do CIP diz ainda que, caso a Lei da Terra não preveja os limites de acesso à Terra, a elite político-empresarial terá maiores facilidades de participar no açambarcamento da terra para posteriormente transacionar a preços mais elevados ao empresariado estrangeiro e às corporações internacionais.
O Governo de Moçambique tem vindo a tentar formalmente a revisão da Política Nacional de Terras (PNT), desde Novembro de 2017, mas a vontade é antiga e iniciou em 2002, no último mandato do Presidente Joaquim Chissano. Na altura, a iniciativa teve o apoio do Banco Mundial e da USAID. No mandato de Armando Guebuza, houve também tentativa de se voltar ao assunto com a realização, em 2008, da Conferência de celebração dos 10 anos da Lei de Terras na qual foi analisado/compulsado o quadro legal e identificada a necessidade de ajustamentos de alguns dispositivos legais. O evento culminou com a criação, em 2010, do Fórum de Consulta sobre Terras (FCT), um órgão de consulta governamental sobre questões de terra.
Já o Presidente Filipe Nyusi, igualmente apoiado pelo Banco Mundial, retomou a ideia com força, mas sem nunca revelar o que se mostrava desajustado na actual política. No entanto, nisto tudo ficou patente que a intenção do Governo é de formalizar a venda dos títulos de Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) como resposta da crescente demanda por este recurso por corporações internacionais aliada aos apetites das elites político-económicas desejosas de tirar vantagens do capital estrangeiro. Sendo assim, esse interesse encontra como barreira o Artigo 109 da Constituição da República de Moçambique que indica que “a terra não pode ser vendida”. (Marta Afonso)