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quarta-feira, 29 junho 2022 06:41

O drama das Mulheres que dão à luz nados-mortos

Dar à Luz um nado morto é doloroso, mas no Centro de Saúde Eduardo Mondlane também conhecido por Nhonguanhane, em Marracuene, na província de Maputo, a dor não é só pela perda, mas também pelo facto de as parturientes terem de levar os nados-mortos, por meio de um transporte público, enrolados na capulana, para posteriormente enterrar no quintal de casa.

 

Algumas parturientes, que passaram pelo Centro de Saúde Eduardo Mondlane e perderam os nados, e outras que conseguiram lutar pela sobrevivência durante o parto, denunciaram à “Carta” actos de maus-tratos e violência psicológica pelos quais passaram. A prática é atribuída a um grupo de enfermeiras e parteiras que em nenhum momento sentiram compaixão pelas parturientes.

 

As vítimas estão traumatizadas. Algumas não desejam mais voltar àquela unidade sanitária, optando por procurar os serviços de saúde em locais distantes e não aconselham as mulheres, sobretudo as que serão mães pela primeira vez, a irem àquele local.

 

Numa altura em que o Ministério da Saúde vem promovendo a humanização do parto nas maternidades do país e procura implementar o lema das maternidades modelo, o Centro de Saúde de Nhongonhuane faz o contrário. Relatos das pacientes que conversaram com a nossa reportagem são de arrepiar qualquer ser humano.

 

Idaite Muhate, também conhecida por “Zinha”, 30 anos de idade, residente em Bobole, na província de Maputo, relata que, devido ao trauma que viveu naquele Centro de Saúde, nunca mais voltará àquele local.

 

Aos trêmulos e com lembranças amargas, Zinha conta que começou a sentir dores de parto por volta das zero horas e, como estava numa zona com dificuldades no acesso ao transporte, aguardou algum tempo antes de sair de casa. Depois de algumas horas, saiu de casa na companhia do esposo por volta das 03:00 horas. Quando chegou à maternidade foi recebida por uma enfermeira, mas o atendimento não foi bom.

 

Depois de várias horas à espera e a ouvir as enfermeiras no corredor a conversar, gritou para que a atendessem porque o bebé estava a sair, e uma parturiente, que também estava no mesmo quarto, conseguiu arrastar-se à procura de uma enfermeira para ajudá-la. Horas depois e com muito esforço, o bebé nasceu sem vida e com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Zinha e algumas colegas pediram para que a enfermeira tentasse fazer algo que pudesse salvar o bebé, porque podia ter sido apenas asfixia. Porém, a enfermeira disse que não podia fazer mais nada pelo bebé: enrolou-o numa capulana, pôs numa caixa e entregou-lhe para que levasse para casa. “Recebi o meu bebé e saí do hospital com meu esposo sem querer acreditar que vou subir o chapa-cem com um bebé morto embrulhado em capulanas e dentro de uma caixa, mas não tive outra escolha. Durante a viagem, as pessoas “no chapa” fixavam o olhar em mim, e quando desci, durante a caminhada para casa, tive de conter as lágrimas porque na rua, as pessoas que me conheciam, me felicitavam pelo bebé. Chegamos à casa e fizemos uma cova, enterramos o nado morto e, quando amanheceu, tinha sido desenterrado pelos cães. A luta foi a mesma no dia seguinte, voltamos a enterrar e quando amanheceu o cenário se repetiu. Levei quase uma semana para enterrar e os cães a fazerem das suas”, relatou.

 

Assim como Zinha, Joana Cossa, de 28 anos de idade, residente em Bobole, tem no rosto as marcas do parto, e contou à nossa reportagem que não quer ter mais filhos.

 

“Cheguei ao Centro de Saúde Eduardo Mondlane, conhecido por Centro de Saúde de Nhongonhuane, com muitas dores e gritava por socorro. De imediato, mandaram-me para sala de parto, pedi que me ajudassem a ter o bebé e as enfermeiras disseram que as devíamos chamar somente quando o meu bebé sair. Lutei para expulsar sozinha e consegui. Minutos depois, recebi pontos porque ele era grande. Passou um tempo e entregaram-me o meu filho, quando minha mãe chegou para me ver descobriu que não haviam fechado bem o umbigo do bebé, o que fez com que ele perdesse muito sangue. Gritei por socorro, pedi para que resolvessem o problema e não obtive ajuda. Minha mãe tentou fazer o que pôde e, antes de chegarmos à porta da saída do hospital, o bebé perdeu a vida. Voltei para informar o sucedido, mas as enfermeiras disseram-me que devia levar o nado morto para casa. Fui para casa e pedi à minha mãe que o enterrasse, mas desde esse dia não consigo dormir na minha casa e tenho a impressão de ouvir choros sempre à madrugada”.

 

Anastácia Mondlane, de 25 anos de idade, é mais uma dentre várias outras mulheres que sofreram a violência obstétrica no país. Desde o princípio da gravidez, teve de conviver com um desconforto cuja origem nunca percebeu, pelo que “durante as consultas receitou alguns medicamentos que nunca aliviaram a minha dor”, relatou Anastácia que também deu à luz em Nhongonhuane.

 

“Quando dei entrada no hospital, mediram minha tensão e deram-me uma medicação. Não falaram nada, mas eles viram que eu não estava bem, mesmo assim, não me ajudaram, deixaram-me sozinha”, lembrou a jovem com um sentimento de repúdio e contabilizou perto de 20 horas de trabalho de parto com as enfermeiras por perto, porém indiferentes e falavam simplesmente “força, tira lá o bebé para fora”, afirmou.

 

Relatou ainda: “quando o bebé saiu estava roxo, como se tivesse queimaduras, não sei dizer se estava morto dentro de mim ou se perdeu a vida durante o parto. A enfermeira, com a criança nos braços, olhou para mim e disse: o seu filho está morto, consegues ver?” A jovem mãe, com lágrimas no rosto, foi obrigada a ser fria, com a enfermeira dizendo que era normal e que poderia ter outros filhos futuramente”.

 

Quando a família chegou ao hospital, em menos de 30 minutos, recebeu alta e foi obrigada a abandonar a unidade sanitária porque, segundo as enfermeiras, não fazia sentido ela continuar naquele local.

 

“Eu estava mal e não conseguia caminhar. Disseram que tínhamos de ir embora levando o bebé, não podíamos ficar porque não havia espaço, mas ainda tinham três camas vazias”. 

 

Lembra que saíram do Centro de Saúde como se estivessem a segurar uma criança viva. No entanto, tiveram de enterrar no quintal de casa. “Foi chocante para mim, eu preferia ter deixado no hospital porque olhar todos os dias para o lugar onde foi sepultado o meu próprio filho fazia-me sentir responsável pelo que aconteceu”, relatou.

 

Dias depois percebeu que no local onde havia enterrado o filho estava vazio. Presumiu que cães vadios teriam desenterrado e sumido com o corpo. Durante vários dias procuraram vestígios, sem sucesso.

 

“Essa foi a pior dor que já vivi na minha vida. Imaginar que meu filho foi devorado por cães, levou-me a uma depressão profunda. Fiquei mais de duas semanas sem conseguir andar e a comida não me entrava”.

 

A violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao aborto. De acordo como Ministério da Saúde (MS), pode ser classificada em física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, negligência, discriminação e/ou condutas excessivas, desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas.

 

Contactada pela “Carta”, a Directora do Centro de Saúde Eduardo Mondlane, Emília Telma Langa, afirmou que este é um problema de todo o distrito visto que não existe um plano de recolha de cadáveres e garantiu que, mesmo quando um adulto perde a vida, o hospital tem dificuldades para gerir o assunto.

 

“Esta é uma unidade sanitária de nível primário e a maternidade é o único local que funciona 24 horas por dia. Neste sentido, não temos um sistema de frio, por esta razão, quando uma parturiente perde seu bebé, conversamos com a família se pode ou não levar o nado morto e aconselhamos que façam o enterro num lugar baldio”, explicou. E acrescentou: “Não temos um carro de recolha de cadáveres, quase todos os pacientes são obrigados a levar para casa, a não ser que seja um feto pequeno, este jogamos na fossa”.

 

Por sua vez, Glória Fumo, responsável pela Maternidade do Centro de Saúde, esclareceu que os nados mortos são entregues enrolados em capulana e, por vezes, em sacos plásticos ou num cesto. Quanto aos maus tratos, garantiu que não pode afirmar ou refutar a informação porque durante o período nocturno a directora do hospital não tem como ter o controlo do que acontece porque a maternidade fica a funcionar de forma independente.

 

“Nós aqui temos muitas dificuldades, mesmo agora que estou aqui a conversar consigo, precisamos de uma ambulância urgente porque temos uma paciente em estado grave, mas até aqui mandaram-nos aguardar não sabemos até que horas. Se temos dificuldades para ter uma ambulância para uma pessoa viva, imagine para transportar um morto”, lamentou.

 

O que causa a violência obstétrica nas maternidades

 

Segundo relatos da Médica ginecologista e obstetra, Alice Amelia Guieia, o que acontece nas maternidades nem sempre deve ser interpretado como violência obstétrica, porque, por vezes, as parteiras são encontradas numa situação de pressão e as parturientes acabam não tendo muita paciência e dizem que foram violentadas.

 

“Eu não concordo que a violência obstétrica existe nas maternidades, tendo em conta que, nos últimos dias, os hospitais se debatem com falta de pessoal e, por vezes, com pouco espaço para albergar pacientes. Então, pode se dar o caso de a enfermeira estar numa situação em que está a fazer o parto de duas ou mais pessoas e acaba pedindo que a paciente faça um pouco mais de esforço para expulsar sozinha o bebé. Mas sempre depois do bebé sair, as enfermeiras estão lá para dar assistência”.

 

Em relação ao facto de mandar as parturientes voltarem para casa com os bebés mortos, a Médica explica: ‘’talvez seja o caso do hospital ou o centro de saúde não possuir condições para dar o devido tratamento aos nados mortos e acabam optando por entregar as pacientes. Toda a mulher antes ou durante a gravidez, deve informar-se de todos os procedimentos que devem ser realizados numa unidade sanitária para não incorrer no risco de ser submetido a situações inadequadas”.

 

Por outro lado, a representante do Ministério da Saúde, Luísa Paguene, garantiu que a instituição se distancia de qualquer acto de violência obstétrica. “Reconheço, como MISAU, que existem boas práticas da actuação, como também comportamentos desviantes. Entretanto, o grosso dos profissionais de saúde tem boas práticas de actuação nas maternidades”.

 

“Nόs, como Ministério, procuramos promover as boas práticas de atendimento ao doente. Por essa razão, temos, ao nível das maternidades, formado os médicos gineco-obstetras como forma de melhorar o atendimento nos hospitais. Criamos também o parto humanizado, em que a parturiente tem a possibilidade de estar com um familiar para ajudá-la durante o parto”.

 

Entretanto, Paguene reconheceu que, durante os últimos anos, devido à pandemia, este serviço teve de parar para evitar a contaminação aos doentes, mas esta é uma prática que está a ser reintroduzida nas maternidades, depois do alívio de algumas medidas de prevenção contra a Covid-19.

 

“Criamos também a iniciativa das maternidades modelo, em que, para ser reconhecida como maternidade modelo, a unidade sanitária deve promover o parto humanizado, e melhorar o trabalho do parto”, disse.

 

Assim, a Organização “Saber Nascer”, que lida com casos de violência obstétrica no país, explicou que, só no ano passado, receberam cerca de 40 casos sobre violência obstétrica só na província de Maputo.

 

Entretanto, a Presidente da Saber Nascer, Camila Fanheiro, garantiu que, ao nível jurídico, a organização conta neste momento com dois casos de denúncias na procuradoria, de mulheres que querem a justiça. Mas ao nível administrativo receberam 15 casos de mulheres que sofreram violência obstétrica de 2021 até este período. (Marta Afonso)

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