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quarta-feira, 01 abril 2020 05:58

Os contornos, os actores e a rota do narcotráfico em Moçambique

Moçambique possui portos e praias que facilitam o tráfico de drogas ao longo da Costa Oriental de África, um negócio que envolve diferentes elites políticas e económicas do país. Esta informação consta num relatório publicado em finais de Fevereiro pela ENACT (sigla que em português significa “Melhorando a resposta da África ao Crime Transacional”) em parceria com a União Europeia.

 

De acordo com os pesquisadores do estudo, a costa do Oceano Índico da África desempenhou um papel crucial na rota regional para o tráfico de heroína. Para os investigadores, a região situada ao longo do litoral possui muitas praias e ilhas remotas que permitem que barcos desembarquem em locais não monitorados para o exercício do narcotráfico.

 

Segundo consta do relatório, o comércio de drogas (que inclui heroína, haxixe e cannabis) faz uso de pequenos portos, praias e enseadas como locais de desembarque de drogas que, geralmente, são colectados por lanchas ou barcos de pesca.

 

“Uma vez trazidas à terra, as drogas são levadas por estrada para os grandes centros de consolidação, possível processamento e transporte - em remessas menores ou maiores e por pequenos barcos”, referem os pesquisadores.

 

Os desafios para, efectivamente, policiar as linhas costeiras ao longo da região oriental de África são imensos. As costas envolvidas são incrivelmente longas – das 10 maiores costas da África, as quatro primeiras fazem parte da rota da heroína (Madagáscar, Somália, África do Sul e Moçambique). Nestas rotas circulam também bens ilícitos que através da linguagem “Bandari Bubu” – um tipo de código usado pelos malfeitores – é difícil de rastrear em locais como Somália, Quênia, Tanzânia e Moçambique porque abrigam grandes indústrias pesqueiras de subsistência e de pequeno comércio e, juntamente, milhares de barcos de pesca não registados.

 

O relatório da ENACT revela que o litoral da Tanzânia é repetidamente identificado como sendo particularmente propício ao contrabando, a 1424 km em comprimento. Em Agosto de 2018, as autoridades da Tanzânia disseram que haviam identificado 134 portos ilegais e 58 não registados de pistas de pouso usadas para contrabandear mercadorias.

 

“As autoridades da Tanzânia não sabem quantos barcos operam actualmente nas suas águas, mas a última pesquisa - realizada em 2009 - indicou que havia quase 6670 barcaças, canoas e pequenos barcos a motor e 73% não estavam registados”, avança a ENACT.

 

A rota moçambicana e o papel de Angoche

 

De acordo com a ENACT, para as redes que têm sua base logística no Porto de Nacala, tornou-se difícil que a heroína entre pela costa norte de Moçambique por causa da insurgência que se verifica na província nortenha de Cabo Delgado e devido às patrulhas militares ao longo da costa e da estrada. Isso tornou certo que o acesso à rede para o “Bandari Bubu” perto da fronteira com a Tanzânia e ao redor de Mocímboa da Praia é inacessível (embora outras redes ainda possam ser usadas). Conforme avançam os pesquisadores, eles apenas mudaram os locais de desembarque da heroína, passando mais ao sul de Angoche, um porto antigo que deveria ser modernizado em 2017, embora isso nunca tenha acontecido.

 

“Angoche parece ter ganho destaque desde que a insurgência eclodiu na província de Cabo Delgado mostrando que a distância também tem suas desvantagens – porque enquanto áreas costeiras remotas, como fronteiras interiores, prometem menos observação e intervenção estatal, elas também podem representar riscos para os contrabandistas. O exemplo de Angoche sugere que, para o sucesso da rede de tráfico, esses riscos são indesejáveis - e também que há uma abundância de costa para escolher quando uma secção se torna muito perigosa”.

 

Segundo a ENACT, “o Corredor de Angoche, no entanto, não é novo. Em Agosto de 2011, um ex-governante local foi preso com 26 pacotes de haxixe e, em 2012, outras três pessoas foram presas quando encontradas com 187 kg de haxixe”.

 

O estudo refere ainda que “devido à má qualidade da rede rodoviária, cidades como Angoche são relativamente remotas e não sujeitas a patrulhas regulares. Por exemplo, Angoche fica a cerca de 180 km da cidade de Nampula, mas essa jornada leva cerca de seis horas de carro por causa do estado da estrada”.

 

Os traficantes em Moçambique usam carros novos e preenchem os pneus sobressalentes com drogas. Eles contratam motoristas para o transporte da heroína à saída de Angoche e de outros locais de desembarque na costa de Nampula, e de lá a mesma segue para Maputo e daí para a África do Sul, o destino final. O governo de Nampula acredita que os 32 kg de heroína apreendidos na província de Nampula foram descarregados, primeiro, em Angoche e, depois, levados para a capital da província, de onde foram enviados para Maputo.

 

A ENACT explica: “as entrevistas sugerem que, além de Angoche, existem outros locais potenciais para a entrega de droga em Nampula. Cada um capaz de servir como “Bandari Bubu”: entre eles, estão os distritos de Memba, Mogincual, Ilha de Moçambique e Moma. Nesses pequenos centros não existem relatos de serem locais usados pelas redes de narcotráfico, mas a consolidação dos pontos em Nampula. Em suas origens mais precoces, os “Bandari Bubu” eram centrais no desenvolvimento da rota Sul e eles continuam sendo pontos de descarga para muitas redes de narcotráfico”.

 

O facto de ocorrerem repetidamente ao longo de um imenso litoral levanta questões difíceis sobre as possibilidades de que todos esses locais possam ser efectivamente de selagem de comércio ilícito, não limitado à heroína, mas também ao transporte de mercadorias comerciais cinzentas, marfim e até armas e militantes subversivos. Enquanto a porosidade da costa implicar enormes riscos para os países, a maior parte das pessoas envolvidas no comércio ilícito (em Bandari Bubu), da mesma forma, não são criminosos organizados sérios, mas sim pescadores e transportadores que oferecem seus serviços para os comerciantes ilegais.

 

Portas de entrada

 

Para a ENACT, existem vários centros urbanos cruciais para a comércio e trânsito de substâncias ou drogas. Muitas vezes, esses locais são pequenos centros urbanos que hospedam grandes infra-estruturas de transporte, como grandes “containers” e portos de embarque ou aeroportos, no interior. Esses lugares distinguem-se como sendo portas de entrada, particularmente úteis e permeáveis. Para a África como um todo, os portos marítimos fornecem acesso crucial ao transporte para o interior e, normalmente, servem como porta de entrada para vários países, já que existem muitos países sem litoral no interior.

 

A importância de Nacala

 

Para a ENACT, “o porto de Nacala é o terceiro maior porto de Moçambique, em termos de volume de carga movimentada, mas também é o maior porto natural de águas profundas da costa leste de África. Esta característica permite entrada e saída de navios, 24 horas por dia, e não requer dragagem”.

 

“A utilidade de Nacala, tal como muitos entrepostos costeiros, deve-se às suas ligações ao nível de mercados e jurisdições internacionais. A pesquisa anterior explicou como a porta é usada pelas redes de contrabando, como pedras preciosas e marfim que estão escondidos em embarques de carvão e madeira e exportados através do Porto. É também um ponto de entrada para economias do interior. Nacala ajuda a alimentar commodities para Moçambique e países vizinhos do interior, como Malawi, Zâmbia e Zimbabwe e fornece um ponto de saída para seus produtos”.

 

A ENACT explica: “Nacala tem potencial para tornar-se num dos mais importantes portos da região e um cronograma contínuo de investimento e modernização que visa chegar lá. Isto também foi previamente identificado, no estudo anterior, como um dos portos mais criminalizados da região, com forte abuso de longa data por redes criminosas para a finalidade do comércio ilícito”.

 

Nacala é descrita como um “feudo” de empresários ligados a negócios ilícitos que doou para pessoas da elite da Frelimo acesso privilegiado ao porto, com controlo aduaneiro regulado e com protecção para os bens ilícitos na rede rodoviária do país.

 

“De acordo com o que descrevemos como ‘um pacto de elite’, essas redes trocaram doações políticas por protecção por seu papel no transporte de heroína através de portos de Moçambique para a África do Sul e da remessa para mercados mais lucrativos, ou para a região sul do consumo africano”, avança a ENACT.

 

Essas redes receberam remessas de heroína através de desembarques em pequenas praias e ilhas ao longo da costa.
Nacala também foi onde as empresas de transporte, armazéns e outros serviços de logística usaram para realizar o seu comércio ilícito.

 

As protecções que receberam incluem uma isenção das suas mercadorias digitalizadas pela Alfândega.
Pesquisadores da ENACT entrevistaram indivíduos envolvidos no contrabando em Nacala e que estavam envolvidos em alguns dos acordos que fizeram com a elite política, tendo os mesmos revelado que as redes de Nacala contribuem com cerca de 4 milhões de USD para a campanha eleitoral da Frelimo em cada ano eleitoral (entretanto diferentes indivíduos contribuem com quantias que variam de 500.000 USD a 1 milhão de USD).

 

Conforme revela o estudo, esses acordos vêm já desde 1994, ano das primeiras eleições gerais e multipartidárias em Moçambique. Segundo consta do relatório, um dos entrevistados que havia feito uma avaliação de segurança do porto disse: “uma abordagem comum era importar droga escondida em contentores de produtos electrónicos, marcadas como sendo para exportação para o Malawi”.

 

A ENACT diz: “a modernização também implicou a implementação de medidas mais rígidas de segurança, incluindo a instalação de postos de inspecção não intrusivas. Os entrevistados também afirmam que houve revoltas nas famílias poderosas que mantêm a sua influência em Nacala Porto.

 

A título de exemplo, Rassul (anteriormente um `jogador primário`) sofreu uma reversão de fortunas: em 2019, ele foi julgado sob acusações de lavagem de dinheiro - mas foi absolvido, porém, ele ainda deve ao estado mais de 2,5 biliões de Meticais. Isso inclui facturas de impostos não pagos, dívidas que ele deve ao extinto Nosso Banco, e uma dívida de 1.140.000.000 MT (cerca de 20 milhões de USD) que sua empresa, a S&S Oil Refinery, deve ao estado.

 

O colapso de Rassul é visto como uma oportunidade para desvendar os impactos mais amplos da crise de Nacala. A ENACT avança: “a par de Rassul está do outro lado, Gulamo Moti, cujo passado está ligado ao comércio ilícito, mas que agora está investindo fortemente no turismo e está construindo, simultaneamente, três novos grandes hotéis em Nacala. Da mesma forma, que se continua a identificar Momade Bachir Suleimane como o chefão principal no país no comércio de heroína”. (O.O.)

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