Nascemos e crescemos - eu e meu irmão mais velho, entretanto, infelizmente já não entre nós - num ambiente relativamente privilegiado, comparativamente, diferente do de uma criança normal na nossa zona, a Circunscrição de Mutxuquete. Se estou correcto (não sou familiar à terminologia colonial), a Circunscrição de Mutxuquete partia de Mutxuquete, berma direita da estrada Chongoene Xai-Xai- Chibuto, paragem a seguir a Jantigwe (Jantigue, na grafia portuguesa), até quase a Aldeia das Laranjeiras, já em Manjacaze. Éramos os filhos do professor Eugénio. Olhados e tratados com muita consideração e respeito. Só perdemos esses mimos todos quando saímos de casa do papá para continuar estudos noutras escolas; aí sim, é onde soubemos o que era a dura infância de uma criança nas zonas rurais.
Esse tratamento privilegiado decorria do estatuto do professor, no caso, o professor Eugénio. O professor, em geral, tinha um papel e estatuto sociais de muito prestígio e consideração. Estou a falar do período anterior à proclamação da independência nacional. O professor disputava de alguma forma autoridade com o régulo; ele era, naquela zona, uma espécie de representante do Padre/Missão, neste caso, da Missão de Malehice. Celebrava missas nos domingos em que o Padre não se fazia à escola, casamentos religiosos na zona, era convidado de honra em eventos, festas e outras cerimônias, incluindo nas de recepção dos madjonidjonis (aqueles nossos irmãos que trabalham nas minas sul-africanas)! Aliás, estes sempre traziam qualquer coisa para o senhor professor: cobertor, sobretudo/casacão, calçado, toalha, sabonetes… sempre tinham qualquer coisa para presentear ao professor, até aparelho de rádio. O professor tinha tratamento privilegiado nas cantinas, podia fazer vales, aliás, os cantineiros quase sempre obrigavam meu pai a fazer vales.
Como se tratou de um período de transição, do período antes para o período pós-independência, neste último, o professor foi perdendo o seu estatuto e papel social até onde estamos hoje. Respeito e consideração social foram-se esfumando sorrateiramente. Hoje, o professor é aquele que conhecemos… com uma imagem bastante degradada, fragilizada e menosprezada. É, hoje, na nossa sociedade, um zé qualquer! Tristemente.
Depois da proclamação da nossa independência, houve também valorização de outras classes. Houve degradação social de certas profissões, sim, como a de professor; mas houve outras que ficaram célebres! Ser ‘dirigente político', por exemplo, era algo diametralmente diferente do que é ser dirigente hoje. Um dirigente tinha muito prestígio, muita consideração… aquela mesmo de um professor no período anterior à independência; a sociedade respeitava-o. De um dirigente político tinha-se uma imagem e consideração bastante grande. Sempre apetecia ver um dirigente, seja administrador, director provincial, governador, director nacional, ministro, etc.
Talvez mais por causa da idade menor ou a diminuta formação e maturidade na altura, víamos no dirigente sempre e sempre uma pessoa especial, com qualidades fora do comum. Não era qualquer um que ascendia à posição de dirigente. Foi o momento em que a moral e ética pública eram valores supremos para se ser dirigente. Não bastava a militância, tinha que ter conduta exemplar. Dirigentes houve que foram descartados por aquilo que se chamava corrupção sexual, ou material, ou ainda por alcoolismo. Os valores morais desempenhavam um papel importante para a nomeação de alguém. Muito por causa disto, ser dirigente era algo apetecível, o dirigente granjeava respeito, consideração e prestígio. Ser dirigente animava…
Mas depois, a coisa deu tanta volta. Hoje… já não anima nada! Ser dirigente hoje… é um grande pesadelo. Pouquíssimos são aqueles que são dirigentes porque exemplos sociais verdadeiros, sérios e competentes, como no passado. São-no devido às suas costas que são… “quentes”! São sempre afilhados de alguém. Sua conduta social é bastante duvidosa, desconhecida e seu comportamento ético e moral muito problemático.
No passado, para um dirigente ser exonerado, havia razões concretas e eram publicamente apontadas. Hoje, tal como raramente se sabe porquê alguém é nomeado, é quase impossível saber-se porquê alguém é exonerado. Só se acorda não dirigente e prontos!
Ser chefe hoje já não anima!
Quando chegasse a hora de fazer exercícios abdominais, o nosso professor de educação física, farejava o nosso cansaço em todos cantos do ginásio. Farejava-o para em seguida enterrá-lo com as patas de insultos como um gato tapando fezes. Com o seu apito baloiçando-lhe ao pescoço passeava no ginásio como um turista com máquina fotográfica a tiracolo. “A preguiça é a mãe de todos os vícios”, dizia-nos com as mãos afundadas nos bolsos do seu fato de treino...
Professor Boavista! Era assim chamado porque trazia, todos dias, uma velha camisete de Boavista de Portugal. Ainda recordo-me da gola da camisete coxa de tanto carregar o fardo de gordura do pescoço, das linhas das axilas mastigadas pelo sal do suor e seu fato de treino. Seu fato de treino que de tão grande consumia-lhe as sapatilhas que nunca víamos e segurava-se na cintura por meio de um nó, aliás, por meio de um atacador que servia de cinto e tinha nó grosso no lugar da fivela.
Quando tive a minha prima de baixa no hospital, via sempre o professor Boavista. Quase todos dias com frascos de urina embrulhados em pequenos sacos plásticos. Lutava pela saúde. Já não tinha o fato de treino, mas a camisa de Boavista por pena continuava com ele. No fundo a camisa escondia os ossos que se desenhavam na pele. Os ossos levantam-se na pele cheia de pêlos como montanhas espreitando das matas.
Tinha falta de urina, o que tinha era um líquido amarelíssimo que nem enchia os frascos e por isso voltava todos dias ao hospital. O enfermeiro riscava com um marcador azul onde a urina devia atingir e o Boavista não conseguia. Usava os muros dos hospitais como muletas e não tinha o apito a tiracolo para soprá-lo uma, duas, dez vezes e acabar com os exercícios abdominais da doença. Ele que sabia que a preguiça é a mãe de todos os vícios, não tinha saúde e talvez fosse por isso que não conseguia encher dois frasquinhos com urina.
Adormecia nos bancos do hospital e apetecia-me chamá-lo pelo número que vinha nos frascos de urina e caso não me respondesse, marcá-lo faltas com aquelas duas gotas amarelas de urina.
Boavista, meu professor. Não sei se continuas vivo. Ou desceste ao campeonato da morte com a sua camisa de Boavista, ou continuas tentando colectar a urina que te engorda os rins. Por que não fazes exercícios abdominais para expulsar a gordura da morte da sua barriga, cheia de urina ou porque não usas os fios de saliva que te caiem da boca para estender a tua esperança molhada de tanto correr de hospital em hospital? Talvez tenhas morrido ou levantas a pata e mijas ainda dois líquidos amarelos e farejas com os ouvidos as reclamações do seu cansaço como uma cadela.
Nas primeiras duas décadas do século XIX, a ciência conseguiu obter uma quantidade incalculável de conhecimento sobre a psicologia e, convenhamos, sobre a biologia dos humanos. Mas, esse património não está ao alcance da maioria dos cidadãos. Todavia, se por um lado, as elites políticas e económicas são detentoras desse conhecimento e usam-no conforme sua conveniência; por outro, a maioria das pessoas continua alheia e negligenciada. É só observarmos como a neurociência é usada para incrementar as vendas e para influenciar politicamente as tendências de voto e controlar o comportamento humano. É evidente que a ignorância facilita a acção do poder sobre a sociedade.
As estratégias de manipulação, em larga escala, têm o pressuposto da manutenção do controle sobre as massas e do poder. Reduzir, no máximo, a capacidade analítica e crítica e, principalmente, a autonomia da maioria das pessoas. Estas são algumas das constatações de Noam Chomsky, que estuda as estratégias de manipulação em massa.
Pensando nestas posturas, nos populismos e populistas, na manipulação de informação, que assolam o mundo, em diferentes escalas e situações, torna-se recomendável reler 1984, um dos mais aclamados livros de George Orwell. Em abono da verdade, este livro é uma narrativa recomendável, tendo sido, inclusivamente, considerado como uma das melhores obras para entender a manipulação de massas e o controle da vida das pessoas. 1984 não é, apenas, a mais reconhecida, mas uma das mais fascinantes descrições desse fenómeno que se ramificou, um pouco, por todos os quadrantes, nos últimos tempos. Não é por acaso que as edições europeias voltam a publicar hoje, em massa, e a ganhar dinheiro com isso. É porque, em todo o Mundo há aquilo que o filósofo Rob Riemen chama eterno retorno do fascismo.
George Orwell, numa espécie de ficção utópica e distópica, reflectiu o que poderia ocorrer numa sociedade altamente vigiada, sobretudo, quando essa obsessiva vigilância transforma-se numa forma de controlar as pessoas e as suas liberdades individuais. Em 1984, o autor descreve um Estado autoritário que impõe um regime de vigilância sobre a sociedade. Para o efeito, foi criado um partido designado “Ingsoc” que impunha essa vigilância à praticamente todas as pessoas. Ninguém ficava imune a essa cerrada vigilância.
O lema do partido era “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Concomitantemente, existia um Ministério da Verdade, que advogava a infalibilidade partidária, portanto, nunca errava. Depois, o Ministério da Paz, responsável pela guerra, o Ministério da Fartura, responsável pela economia e, finalmente, o Ministério do Amor, cuja responsabilidade recaía no controlo da população através da espionagem.
Na descrição, a população vivia em silêncio. Era uma forma de estar, e muito conveniente. Era uma espécie de coragem para o silêncio, que tipifica a maioria das pessoas, que preferem um resguardo do que colaborar com propostas e ideias para fortalecer as suas sociedades e países. Era uma espécie de dar voz ao silêncio, num modelo de silêncio do período da inquisição, quase roçando a cobardia. Esta é postura de muitos que, mesmo querendo dar uma opinião, qualquer que seja, encontram todos os receios para assim não o fazer.
A estes silêncios, se juntou uma certa tendência para a paralisia da acção social. Portanto, se consolida uma espécie não de silêncios, mas de uma certa coragem necessária para exercer o direito a voz do silêncio. Exige-se coragem para o silêncio e para a inacção. Paradoxos de um pós-modernismo amorfo.
A voz e a coragem do silêncio nos recordam até da razão populista. Quer dizer, redefinir e ressignificar estes silêncios, inactividades e os populismos que usam o discurso democrático com outros propósitos. Estes são os silêncios que não se conseguem opor à manipulação, pois, este transformou-se num método de construção retórica do povo e do político, do inimigo e dos fiéis, enfim, de todas estas construções sociais que poderiam ser designadas por “ideologias” de coragem para os silêncios e para a paralisia à acção social.
Cooptamos a liberdade em nome de princípios e regras que só nós mesmos acreditamos e fazemos delas indiscutíveis. Ganhamos crenças de que as nossas teorias são as melhores e as únicas possíveis. Na realidade, falamos muito e escutamos pouco. Nasce aqui este debate sobre a coragem para o silencio, tão necessária como treinamento pedagógico para assistirmos o erro sem ter que falar. Quer o silêncio, como o próprio populismo viraram essa forma complexa de articulação de demandas em determinada formação social e da representação simbólica designada vazio. (X)
A Assembleia da República é o mais alto órgão legislativo na República de Moçambique ao qual cabe determinar as normas que regem o funcionamento do Estado e a vida económica, social e política através das leis e deliberações de carácter genérico conforme resulta do disposto no artigo 168 e do artigo 178, ambos da Constituição da República de Moçambique (CRM).
Ora, para efeitos de reforma ou revisão legislativa, têm iniciativa de lei: os deputados, as bancadas parlamentares, as comissões da Assembleia da República, o Presidente da República e o Governo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 182 da CRM.
Para além dos actos legislativos da Assembleia da República, o processo de reforma legal pode operar-se através dos actos normativos do Conselho de Ministros que revestem a forma de decreto-lei e de decreto. Aqui importa lembrar que os decretos-leis do Conselho de Ministro carecem de autorização legislativa da Assembleia da República, conforme se depreende do artigo 179 da CRM.
Em Moçambique, o processo de reforma legal tem sido contínuo, seja por falta de lei e demais actos normativos específicos que regem determinadas matérias ou aspectos da vida social, económica, política e cultural do País, seja porque alguma legislação em vigor está desajustada da realidade ou porque apresenta várias lacunas.
Existia no País um organismo que se designava Unidade Técnica da Reforma Legal (UTREL) que tinha várias funções específicas em reforma legal e, fundamentalmente, com os objectivos de assegurar a planificação integrada, a coordenação, a articulação, a execução e o acompanhamento dos programas e projectos de reforma legal. No entanto, a UTREL foi extinta sem que tivesse sido substituída por uma entidade com competências similares ou especializada em matéria de reforma legislativa com atribuições e/ou competências próprias para o efeito.
Desde então, o processo de reforma legal em Moçambique é feito de maneira um tanto quanto atabalhoada, baseado em critérios de duvidosa transparência, em que são contratados diferentes consultores para o efeito de reforma ou elaboração de determinada legislação a ser aprovada pela Assembleia da República ou pelo Conselho de Ministros, dependendo na natureza ou tipo de actos normativos (Leis, Decreto-leis, Decreto, etc).
Casos há em que os consultores contratados não têm domínio bastante para levar a cabo o trabalho de reforma da legislação em causa, de tal gravidade que chegam a elaborar e submeter documentos que não respeitam a estrutura de uma lei e que revelam se tratar de um trabalho maioritariamente de “copy & past” de outros ordenamentos jurídicos, com destaque para Portugal e Brasil, quais autênticos plágios que não respondem aos problemas da realidade moçambicana.
Para além disso, em determinadas situações, sem apresentação de razão plausível, não são lançados concursos públicos para a contratação de consultores para a reforma legal e, nos casos de adjudicação directa, também não estão claros os critérios da mesma. Na verdade, a contratação de consultores para a materialização da reforma ou revisão legal tornou-se um negócio maculado, em que o que fala mais alto é a distribuição dos elevados honorários e comissões entre os envolvidos no processo e não o conhecimento e a capacidade técnica.
Outrossim, o processo de reforma ou revisão legal em Moçambique raramente é acompanhado da devida participação pública, a qual é feita à velocidade da luz, sem tempo razoável para análise e oferecimento de contribuições consistentes e coerentes, para além de que há significativa exclusão de actores chave da área cuja reforma se opera, como é o caso das organizações da sociedade civil, da Ordem dos Advogados de Moçambique e da academia que não se resume apenas na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.
Os processos de revisão da CRM, a lei mãe, em particular a de 2004 e sobretudo a de 2018, aprovada pela Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, foram altamente caracterizados por deficiente participação pública. Nesta última revisão constitucional, devido à importância e profundidade das alterações constitucionais introduzidas houve quem defendesse a necessidade de referendo, considerando a adopção da descentralização político-administrativa agora em vigor e a alteração do direito de sufrágio universal e de participação política no que às autarquias locais diz respeito. Porém, a obrigatoriedade de realização do referendo foi completamente ignorada.
Importa aqui referir que em alguma participação pública que é levada a cabo em vários casos de reforma legal, ainda que de forma deficiente, as contribuições quase que são ignoradas no documento final aprovado. Trata-se, pois, de uma participação pública forçada, senão forjada, com o intuito principal de legitimar o processo em questão. Algumas organizações são chamadas para oferecer as suas contribuições em prazos extremamente curtos que não permitem a profunda e boa análise dos documentos normativos a aprovar.
Em bom rigor, o processo de reforma ou revisão legal está a ser penoso para o Estado do ponto de vista de tempo e dinheiro perdido, bem como da perda de credibilidade das instituições envolvidas neste processo aos olhos dos cidadãos, uma vez que é aprovada legislação de difícil compreensão e implementação.
Não faz sentido que a revisão do Código Penal tenha tido sido efectivada no ano de 2014 através da Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, para num período de cinco anos, já no ano de 2019, este Código Penal ter sido sujeito à nova revisão com a aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 24/2019, de 24 de Dezembro, que aprova o novo Código Penal ora em vigor. Curiosamente, há sinais de que o mesmo é novamente objecto de um processo de revisão devido às várias incongruências estruturais e de conteúdo que apresenta para um bom exercício hermenêutico no interesse do Estado de direito democrático, de justiça social, baseado no respeito pelos direitos humanos.
Situação similar verifica-se relativamente ao processo de revisão do Código do Processo Penal que foi efectivado através da aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, em que partes das suas normas são de duvidosa constitucionalidade de tal sorte que foram objecto de acção de inconstitucionalidade junto ao Conselho Constitucional ainda por decidir.
Um outro exemplo de obscuridade de reforma ou revisão legal que muito custa ao Estado prende-se com a legislação eleitoral que, obrigatoriamente, é reformada a cada ciclo eleitoral e não obedece a nenhuma orientação de política legislativa senão a vontade e interesses partidários dos principais partidos com assento na Assembleia da República.
Alguns regulamentos (decretos) do Conselho de Ministros e Posturas Municipais são elaborados e aprovados de forma problemática, com sérios encargos para o povo, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de participação pública transparente e compreensão das razões e objectivos da reforma ou adopção desses actos normativos, com grande impacto no bolso e condições de vida dos cidadãos.
No contexto da COVID-19, foi aprovada a Lei n.º 10/2020, de 24 de Agosto (Lei que estabelece o Regime Jurídico de Gestão e Redução do Risco de Desastres), cuja participação pública foi deficiente e os critérios de contratação de consultores para o efeito não transparente.
Actualmente, só para dar alguns exemplos correm processos de reforma ou revisão legal que abrangem áreas ou matéria de grande relevância e interesse público cuja transparência, participação efectiva e abrangente se requer, quais sejam:
Portanto, há uma propositada desorganização no processo de produção legislativa que permite com que este processo seja um negócio obscuro altamente lucrativo para determinadas entidades e que fere os princípios mais elementares do processo de produção legislativa, como a democracia e da transparência, tanto é que ultimamente a legislação aprovada é altamente deficiente e dificilmente reflecte a realidade moçambicana. Não há, pois, um verdadeiro debate público, sem discriminação no processo de produção legislativa.
Carlos Cardoso acordou da morte. Abriu com os dedos os botões de balas que lhe fechavam o ar húmido da vida. As cápsulas das balas caíram vazias de morte sobre os pés de Cardoso. Mirou o trânsito que entornava quilos de buzinas na estrada. A sua coluna grasnou como dobradiças de uma porta com verniz de ferrugem. E porque continuava vaidoso, penteou com os dedos os cabelos; da nuca à testa e da testa às laterais. Acordou da morte.
Deu dois passos e atravessou, com os passos diagonais, a estrada da Praça dos Continuadores. Dois vendedores ambulantes mostraram-lhe relógios de prata; faziam coros de preços decrescentes, simulavam colocar o relógio no seu pulso, mas Cardoso não tinha tempo de olhar aos números curvados debaixo de ponteiros apressados e sem tempo. Avançou o jornalista. Cheirava a sono húmido da cova da morte e tinha pegadas de gritos no rosto. Os mesmos gritos que explodiu pela boca quando morreu. A barba branca baloiçava nas mechas do bigode bem arrumado pelo tempo.
Entrou num café onde na porta o corpo de Cistac, derramado ao chão, plantava coágulos de sangue no solo. Recuou o passo. Observou o corpo de Cistac vibrando os últimos movimentos da vida. Chorou pela morte de Cistac porque também já tinha morrido e sabia que a morte era um alfabeto duro de ler. Nada podia fazer Cardoso naquele momento. Do seu lado passou uma manada de carros avermelhados de sirenes, com as ancas escoltadas por motorizadas e logo traçou uma linha de ligação entre o corpo de Cistac e os carros que se dissolviam na luz da velocidade.
Fez uma ventoinha com o jornal, “Metical”, dobrado que trazia no cabide da axila e abafou o calor que lhe escorria o rosto de suor. Tomou um café. Viu as horas no relógio que não tinha no pulso. Um ecrã com corcunda, com dois ramos metálicos de antena, preso numa caixa de grades, no canto da cafetaria, trazia a Cardoso imagens do seu país. Era um ecrã preso, falando de um país livre. A legenda obesa de letras das imagens afinava-se e saía pelas grades até aos olhos de Cardoso.
De súbito Cardoso recordou-se que era dia 22 de Novembro. Tinha a segunda volta da morte. Tinha de voltar a morrer. Arrumou-se, no café, deixou o valor da conta numa toalhinha de papel, bebeu as últimas imagens do ecrã preso, leu na necrologia do jornal a sua morte, algemou as palavras com os botões de balas e voltou a morte.
Em 1975, Moçambique alcançou a independência política e passou a ter uma representação política legítima e proveniente de uma revolução no verdadeiro sentido Marxista. Os novos representantes políticos construíram um Campo Político descrito por Pierre Bourdieu (1930 – 2002), pensador francês e detentor de uma vasta obra sobre ciências sociais e políticas, entre elas: O Poder Simbólico (1989), mas cujo Campo Político tem similaridades ao neo-maquiavelismo[1].
Na obra O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu explica: "o Campo Político é entendido como um campo de forças e das lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento (…)" ou seja, “o Campo político é o lugar em que se geram a concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos (…)" (2007: p.164). Em outras palavras, Bourdieu pretende nos dizer que o Campo Político é um microcosmo que nos permite construir de maneira rigorosa e demonstrar como funciona a arena política, o jogo político e as lutas políticas.
Nesta perspectiva, segundo Bourdieu, entende-se por representação política um mundo social onde existem os profanos (o povo/as massas) que reconhecem que não têm competência de governar, dirigir ou gerir a coisa pública e entregam aos profissionais políticos para pegarem o leme do barco e colocarem o barco a navegar.
Acredita-se que, devidos às suas limitações epistemológicas sobre como funciona a coisa pública, os profanos prefiram permanecer como "agentes politicamente passivos", enquanto isso, os profissionais políticos, que a princípio devem ser figuras amplamente preparadas e munidas de ferramentas necessárias sobre como funciona o Campo Político e a representação política, possam ser "os agentes politicamente activos".
Segundo Pierre Bourdieu, devido a este reconhecimento e entrega do poder dos profanos em relação aos profissionais políticos, estes acabam ganhando a legitimidade e, por consequência, o monopólio da profissão política, uma vez que este tem "condições sociais da constituição da competência social e técnica que a participação activa na política exige" (BOURDIEU, 2007: p.164).
Pierre Bourdieu percebe que os profissionais políticos são individualidades altamente preparadas e dotadas de capacidades intelectuais acima da média. São pessoas capazes de fazerem intervenções públicas exaustivas e convincentes. Possuem conhecimentos em diversas áreas que lhes permitem fazer o jogo político e duplo de uma forma sagaz. São profissionais com uma retórica cientificada e com capital político elevado e que marcham dentro de uma estrutura institucional altamente burocratizada ou organizada.
Os profissionais políticos são homens polidos para o Campo da Política. Entretanto, na Pérola do Índico, já tivemos e existem alguns profissionais políticos com qualidades aproximadas a que Pierre Bourdieu elenca, mas também existem muitos amadores políticos que, mesmo tendo o aval dos profanos (o povo, o eleitor, os desfavorecidos), demonstram não estarem à altura daquilo que a representação política e o Campo Político exigem.
Na Pérola do Índico assistimos individualidades que, mesmo sendo porta-vozes de uma instituição política ou partidária, não possuem um discurso organizacional que o Campo Político emana. Não demonstram que os habitus culturais, sociais e políticos que organizações permanentes orientadas para a conquista do poder exigem. Demonstram que o poder que os profanos ou desfavorecidos lhes concederam para que tivessem um caminho livre de gerir a coisa pública ou mesmo representar-lhe não o merecem.
É importante que, na Pérola do Índico, os profanos saibam quem de facto os representa no Campo Político. Quem de facto possui legitimidade consciente para que, de cinco em cinco anos, possa renovar a nossa chama de esperança e contribuir para o nosso desenvolvimento humano, social, económico, cultural colectivo. Os profanos da Pérola do Índico não devem ser apolíticos, mesmo que os homens políticos e jornalistas políticos continuem a emitir opiniões programadas e com um determinado fim.
Os profanos da Pérola do Índico precisam de entender que, conforme defendia Bourdieu, "a vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre o partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta das classes, como uma relação propriamente simbólica" (2007: p.175).
No entanto, o que devemos entender no parágrafo acima é que tudo na política não passa de uma encenação, mesmo quando assistimos aos nossos representantes da "casa da demagogia", aparentemente a contra-atacar-se, devemos entender que, na realidade social, no mundo social que eles representam, aquilo é uma encenação. Tudo está a ser sistematicamente manipulado em função dos interesses dos grupos que os mesmos representam no Campo Político e dos pequenos grupos burgueses que eles incorporam no âmbito da representação política.
Os profanos da Pérola do Índico precisam de descobrir donde vem a luz do sol que ilumina a janela desta caverna platónica, para que saibam escolher quem de facto merece ter o monopólio profissional da política e como funciona a representação política e do Campo Político, para que passemos a ser representados por profissionais políticos à altura e com idoneidade, intelectualidade, responsabilidade, integridade e profissionalismo exigido.
[1] Entende-se como o processo que caracterizou os novos políticos que surgiram a partir do ano de 1974 e que passaram a fazer suas carreiras dentro dos parâmetros de um maquiavelismo adaptado as circunstâncias democráticas. Um maquiavelismo com condimentos do realismo moderno, libertário e sem o uso de pressupostos extremos do maquiavelismo originário. Alias como defende Robert Michels (1971: p.299) que acompanha a natureza humana, que usa da apatia das massas e das multidões, permitindo com isso que haja o desenvolvimento das oligarquias.