A mulher sentada nesta cama à minha frente deve andar nos quarenta. Ou pouco mais. Se não fosse todo o crepúsculo do entardecer que a habita, diria que está no auge. Da vida. Mas tudo leva-me a acreditar que os dias que a esperam serão ainda mais dolorosos. Quer dizer, naquilo que eu imagino e sinto, ela pode estar a viver numa sombra gelada. Pensando que só Deus é que pode reverter toda a situação dramática que enfrenta. É isso: já não resta nada no seu corpo.
Está sentada com o travesseiro a suportar as costas. O lençol serve apenas para cobrir os quadris porque a partir dali para baixo não tem nada. Ou seja, as coxas e as pernas foram amputadas. O braço direito foi removido inteiro pelos malditos serrotes cirúrgicos, e o outro braço que resta está engessado, na iminência de ser cortado para eliminar a derradeira esperança. E eu faço um tremendo esforço para não chorar. Porém, notando ela a minha forte comoção diz-me assim: amor, chora à vontade, vai-te fazer bem.
Ainda não consegui arvorar outra paralvra para além do supérfluo e estúpido “como vai, Joana?!” Sinto-me dominado. Arrasado. Apanhado numa rede de emalhar da qual jamais sairei. Mas ela parece superior ao seu próprio sofrimento. À minha fraqueza. Joana é mais forte que eu. O rosto dela, brilhante, parece o anúncio do amanhecer. As palavras que saem da sua boca vêm directamente do coração, como agora que me olha nos olhos e diz: não te preocupes, amor, tudo isto vai passar como os ventos que sopram e passam.
Lá fora está a chover, e esta mulher não vai poder assistir ao belo espectáculo da queda pluviométrica. Pior do que isso, não sabe como serão os dias que a esperam depois de sair de uma enfemaria que pode ser das mais desesperadas do hospital. Mas ela não desespera. Diz-me que ainda vai a tempo de ser como Óscar Pistorius, que ganhou medalhas correndo com próteses de carbono. “Eu vou me levantar daqui, amor. Aguarda-me”.
O que mete medo nesta mulher é o brilho do rosto. Dos olhos. É o sorriso permanente. Que demolem por completo o sofrimento de um corpo que a partir de agora vai servir para muito pouco. Para quase nada. Joana desmente tudo isso. A leveza imposta na firmeza das palavras que lhe saem do coração pela via da boca, deixam exposta uma mulher que ainda sonha em voar. Sem asas. Decepadas para sempre.
A única mão que lhe resta naquele braço engessado parece de uma criança. É leve como pluma. As unhas, lindas, estão cuidadosamente cortadas, mas ela diz, sorrindo, que daqui a pouco esta mão também vai ser serrada juntamente com o braço e atirados ao forno para incineração, como se fazia naquele tempo com os ramos de oliva que não produziam. Eram cortados e queimados. E os membros da Joana já não dão frutos.
Desde que sucumbimos ao modelito político e económico neoliberal, com o fatídico abraço aos pressupostos democráticos, como sociedade, temos sido sistematicamente “infernizados" pelo Tokoloshe do ano eleitoral, essencialmente visto como “ano sacrificial”.
Na mitologia zulu, uma pausa aos gregos, Tokoloshe é das mais perniciosas e levada das entidades, que se torna invisível ao beber alguns goles de água potável. Entre parênteses, ao contrário da magia da invisibilidade de Tokoloshe, nos tempos que correm, “almas penadas” tornam-se visíveis pura e simplesmente por ingerirem alguns goles de álcool. Ainda me pergunto se o polonês que falou de “sociedade líquida” conhecia Tokoloshe. Basicamente, Tokoloshe é invocado por uns para causar problemas a outros com as suas diatribes. Além de aterrorizar as crianças, seus poderes são extensivos a causar todo o tipo de danos e infortúnios às vítimas.
O Tribunal sul-africano negou liberdade provisória a Manuel Chang porque:
1. Se Chang estiver fora da cadeia, mesmo vivendo numa casa fortemente guarnecida, ele pode fugir. Os advogados de Chang usaram o argumento da doença (diabetes) e do aconchego familiar, mas não funcionou.
2. Há receio que Chang fuja para Moçambique. Aliás, foi por causa dessa possibilidade (de Chang fugir para Moçambique) que foi questionada a escolha da casa de Malelane, em Mpumalanga, que dista cerca de 50 quilómetros da fronteira. O Tribunal fincou o pé mesmo com proposta de uma outra casa "bem ao lado" tribunal de Kempton Park.
3. Há certeza de que, em Moçambique, Chang goza de proteção do Estado, do Governo e do seu partido (que aqui é tudo mesma coisa). Na verdade, o Tribunal sabe que se Chang estiver em Moçambique (por fuga ou por extradição), nada vai acontecer e não será nem julgado nem condenado. A imunidade e a influência de Chang em Moçambique são visíveis a olho nú. O Tribunal tem "certeza" da inoperância do nosso sistema de justiça.
4. Quem mandou prender Chang foram os americanos baseando-se em acordos nesse sentido. Quando os americanos pediram a prisão de Chang não era para ser colocado numa montra e ser assistido, era (e é) para ser extraditado para lá e ser julgado lá, tanto que os outros amigos dele estão lá mesmo nos É-U-Â.
Estou aqui a tentar encontrar uma razão que justifique a entrega de Chang à Moçambique de bandeja. Que Estado é esse que faz de tudo para que um gatuno perigoso internacional não fuja para a sua casa e volta e meia deixa, assim de mão beijada, o mesmo bandido na mesma casa para onde o mesmo Estado temia que o mesmo gatuno fugisse? Você entendeu? Acredito que não. Eu também não tenho como fazer entender isso. É que, realmente, não tem como se entender uma coisa dessas. Não tem lógica. Não faz sentido.
É que, se os sul-africanos devolverem Chang à Moçambique, a humanidade estará doente. Os Infulenes serão poucos para tanta demanda. E aí os sãos serão, de facto, aqueles que hoje pensamos que roubaram o nosso dinheiro. Afinal, seremos nós os ladrões. Talvez até, muito possivelmente, os vizinhos parem de fumar suruma de vez.
- Co'licença!
Corvo onde não é conhecido chamam-lhe pato. Pois é, pessoal. Uma coisa é você ser um grande lambe-bota, daqueles reconhecidos na praça, com língua flexível e peluda, que faz o seu trabalho como ninguém, e outra, bem diferente, é você ser chamado a exercer aquela profissão que você tem diploma. Ou seja, uma coisa é você atrapalhar a opinião pública, fazendo-se passar por grande sábio, e outra é você ter que trabalhar mesmo, mostrar o que você aprendeu na escola e na vida. Uma coisa é você andar a cantar por aí que é advogado e outra, bem diferente, é você mostrar com A+Bê que você é advogado de verdade.
Não é fácil. Enquanto o mundo está roer unhas para saber até onde o seu cliente está metido neste crime financeiro que deixou o país de tanga, você aparece a falar de um pudim contaminado com pesticidas orgânicos fosfóricos que a família dele, por sorte, não comeu. As pessoas querem saber como o seu cliente recebeu as "galinhas" e você fala da irmã dele que foi assassinada pelo marido. O público quer saber onde está o dinheiro que seu cliente roubou e você traz uma conversinha de esconde-esconde que se joga lá no partido que até bem pouco tempo o pai dele era chefe. Isso é burrice ou é mesmo a arte da atrapalhação?
Mas também, em abono da verdade, não se sabe se esses advogados têm mesmo experiência em crimes financeiros. É que malta Krause estavam à altura da coisa. Agora endossar um amigo que trabalha apenas com processos de fofoca, de divórcio, de compra e venda de "Honda-Civic" e de dependências tipo-um na Malhangalene pode não ajudar muito.
Mas, prontos, seja como for, o que me deixa feliz, neste momento, é aquele gatuno diabético, que alugou uma casa ali na fronteira, mas que não pode viver nela porque está quase a embarcar. Isso é confortante. Esses advogados fosfóricos já não me atrapalham mais. Seriam tristes, se não fossem cómicos.
- Co'licença!
Na literatura sobre o que chamamos de “democracia” há um (antigo e divergente) debate sobre o que este termo representa, sobretudo, num momento em que nota-se algum descrédito sobre a “política formal”, que era vista até antes da eclosão de “novas” formas de participação política galvanizadas pelas redes sociais da Internet, em coexistência com a exercida por instituições como partidos políticos e sindicatos, sendo que a face mais marcante revela-se pelos baixos níveis de participação em eleições e consequente elevar das abstenções (Dahlgren, 2009; Van Reybrouck, 2016). Igualmente, regista-se falta de consenso sobre que critérios usar para classificar se um determinado país é ou não democrático. Como forma de minimizar este facto, surgiram termos classificatórios como “democracias eleitorais” – que designa todos os países que, a partir da realização de eleições regulares, julgam-se na qualidade de outorgar-se o nome de “democráticos” (Hermet, 1997).
No entanto, sem alongar-me num “bula-bula” meramente teórico-conceptual, quero aqui partilhar por que razões penso ser problemática, mas, ao mesmo tempo, oportuna a última intervenção da CNE.
Como nota de rodapé, cabe dizer que um dos maiores empecilhos sobre a gestão e administração das eleições no mundo prende-se justamente com a logística e transparência das contas. Aliás, num passado recente a França viveu um escândalo que envolvia o então Presidente da República, Nicolas Sarkozy, que fora acusado de ter recebido dinheiro ilícito por parte do Governo Líbio para sustentar a sua campanha eleitoral em 2007. Nos Estados Unidos, país tido como exemplo de “democracia e transparência”, o debate não foi diferente sobre as eleições de 2016 que elegeram Donald Trump como Presidente. Ainda ontem (17) lia uma nota que dava conta da investigação das finanças usadas durante as eleições de 2018 no Brasil.
Registamos, igualmente, que um pouco por vários países de África a questão das finanças em eleições é recorrentemente colocada, sendo que Moçambique não seria excepção (Gazibo e Thiriot, 2009; IDEA, 2014). Note-se, ainda, que a forma como os nossos partidos financiam as suas campanhas em tempo de eleições revela-se problemática, dado que existe um total “deixa andar” sobre a fonte dos recursos, o que pode revelar uma total desigualdade de concorrência quando existem aqueles que possuem maior musculatura financeira que os outros, sobretudo, quando recorre-se ao ‘‘political settlement’’(Weimer, B. et al, 2012) como forma de sobrevivência, o que, em última instância, abre espaço para recorrência a formas pouco claras de financiamento. Recordo que no climax das eleições gerais de 2014, o Jornal Savana escrevera no seu editorial o seguinte: “(...) a profusão de oferendas, a pretexto de caridade e militância, decorre da percepção dos doadores de que uma oferta a um partido e seu candidato com potencial de vencer as eleições é meio caminho andado para um futuro menos espinhoso em termos de acesso a negócios’’.
Não há concordância do ponto de vista teórico sobre qual seria o melhor modelo para o financiamento em eleições, mas penso ser urgente que se comece a discutir estas questões com mais acuidade e com estudos aprofundados para dar-nos melhor interpretação sobre os bastidores do financiamento dos partidos políticos em Moçambique, mesmo reconhecendo que, entre as eleições autárquicas e gerais, existam modalidades diferentes, onde numa exige-se o auto-financiamento e noutro existe co-participação do Estado para a realização da campanha eleitoral.
Voltando ao título que faz jus para esse comentário, levanto a questão da transparência por dois elementos interligados entre si:
O primeiro elemento é facto de não haver clareza entre o que foi dito em Setembro do ano passado em sede do Conselho de Ministros e o que viria a ser alterado pelas declarações do Ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, em Novembro do mesmo ano. Sucede que no dia 11 de Setembro de 2018, o porta-voz da 29ª Sessão Ordinária do Conselho de Ministros, Augusto Fernando, disse à imprensa que as eleições gerais de 2019 estavam orçadas em 6.6 biliões de meticais, dos quais foram avalizados 6.5 biliões de meticais que constam do Orçamento do Estado. Porém, como veio a ser confirmado pelo porta-voz da CNE, Paulo Cuinica, os números não seguramente esses, tendo praticamente multiplicado por dois o valor inicialmente divulgado. Penso, salvo melhor explicação, que torna-se urgente e oportuna a clarificação das contas sobre o processo financeiro que vai conduzir as eleições do presente ano, pois ficou-se com a impressão de se ter inscrito um valor no Orçamento, sem a devida explicação que para além daquele haveria necessidade de um acréscimo a ser mobilizado em outras fontes de financiamento. Aliás, num momento em que somos vistos como leprosos no recebimento de empréstimos e/ou apoios pela ‘’mão externa’’, seria oportuno a lisura do processo em torno das sextas eleições gerais no país.
Segundo, penso que essa é uma oportunidade para não só sabermos que a CNE está sem verbas suficientes para as eleições, mas igualmente para, de uma vez por todas, conhecermos as contas daquela entidade (desde as primeiras eleições). Sucede, pois, que passados mais de 20 anos após as ‘’eleições fundadoras’’ em Moçambique (1994), nada sabemos ao detalhe sobre as contas daquela que é a principal entidade da gestão e administração de eleições em Moçambique. A revelação dos gastos em forma de relatórios para consulta pública por parte da CNE, não só seria um acto que promoveria a transparência e monitoria eleitorais, mas também daria exemplo para os partidos políticos que, até que se prove o contrário, a justificação ou demostração dos gastos em momentos eleitorais por estes realizados se não é deficitária é mesmo inexistente.
Referências
Dahlgren, P. (2009) Media and Political engagement. Citizens. Communication and Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
Falguera, E. et al. (2014). Funding of Political Parties and Election Campaigns: A Handbook on Political Finance. IDEA.
Gazibo, M., e Thiriot, C. (2009). Le politique en Afrique. État des débats et pistes de recherche. Karthala. Paris.
Hermet, G. (1997). De la démocratie électorale à la démocratie sociale. Paris: Flammarion (programme ReLIRE).
Jornal Observador (08 de Novembro 2018). Eleições gerais do próximo ano em Moçambique vão custar 214 milhões de euros.
Jornal Observador (11 de Setembro 2018). Eleições gerais de 2019 em Moçambique estão orçadas em 92 milhões de euros.
Jornal SAVANA (2014). Editorial – Urgente regulação do financiamento eleitoral.
Van Reybrouck, D. (2016). Against elections. Bodley Head. London.
Weimer, B., Macuane, J., & Buur, L. (2012). A Economia do Political Settlement em Moçambique: Contexto e Implicações da Descentralização. In B. Weimer (Ed.), Mocambique: Descentralizar o Centralismo: Economia politica, Recursos E Resultados (pp. 31-75). Maputo: Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE).
Os ritos políticos e legais cumprem diversas funções. De instituição, investidura, inscrição e/ou legitimação, além das funções lúdicas e simbólicas que também concorrem para a reificação, no imaginário social, do “teatro político” que dá materialidade às instituições e à praxe que lhes é inerente.
O processo de reificação das funções é fundamentalmente instruído de forma espetaculosa, vistosa e, no nosso caso, com um misto de dramas, exorcismo de ressentimentos interpessoais, de grupos e partidos exacerbados por uma cultura política de colação entre as regras e valores formalizados, temperados com altas doses de “pessoalização” de tais actos políticos e legais. Em peculiares mesclas do público com o privado, indivíduos imprimem estilos próprios nas formas de (des)fazer política. Familiares e amigos à reboque!
A habitual procissão à praça dos heróis “faz a tradição” de confirmação e reprodução de versões de discursos hegemónicos que contribuem para a perpetuação de narrativas históricas e políticas sobre nós (como moçambicanos) e sobre o nosso Estado. As idas e faltas, as falas e calas são também parte desse ventriloquismo de petrificação instrumental de referências e estabelecimentos de vínculos, ativos, entre passado e presente. O aprumo e solenidade com que as nossas “estruturas” comparecem, se mostram ou se esgueiram no cerimonial cumprem os requisitos da prontidão para rituais cuja razão e função é ativar, por meio da solenidade, códigos de legitimação e de perpetuação do lugar dos nossos mitos fundadores, emprestando, à “pátria”, lugares cativos de memória, pretendida linear, colectiva, partilhada e que endure o teste do tempo. Digo mito, no sentido ético do termo e não como meras elucubrações fantasiosas desprovidas de realidade.
A (in)feliz expressão, ”exaltar a pátria” proferida pelo ex-presidente AEG não estava, de todo descontextualizada. O agora emblemático e simultaneamente anedótico “exaltemos a pátria”, foi vincado na hora e lugar certos, salvo pelo facto de a predisposição dos ouvintes não mais estar em sincronia. Porque as “placas tectónicas sociais” são altamente voláteis, suscetíveis a mudanças de vontades e humores, vários cidadãos reservaram-se o direito de não mais impressionarem-se com os recitais com os quais se pintava e foi pintado, por destacamentos da “guarda pretoriana”, “o filho mais querido da nação”. Se calhar, dadas as circunstâncias, o inverso também possa ser verdadeiro. A esta altura do campeonato, muitos dos que vestiam o manto de “maravilhoso”, como povo, não devem passar de simples e incómodos “apóstolos da desgraça” ou, parafraseando o bem humorado aviador, não passam de ingratos campónios que mereciam boas ferroadas de mosquitos. Onde se viu questionar a ousadia de um “heróico combatente” que nada mais faz senão exaltar a sua pátria!? ”Se a tua pátria for esta, exalta aí e não me azucrina a paciência”! Infere-se da verborreia do “messias da prosperidade”.
Tornar instituições credíveis e perenes é mesmo obra. Vocalizar biografias de heróis e candidatos a isso, como narrativas coerentes, relativamente consistentes ao longo do tempo, demanda passar a verdadeiras provas de fogo (reais ou caricaturadas). De momento, salvo por reviravoltas que deixem meio mundo pasmo, o lago não está para patos e, com este andar, sobre os descaminhos que levaram à "hipoteca da soberania”, capaz um "indivíduo herói" tornar-se inelegível à um apartamento no condomínio da constelação de estrelas e não tomar posse no panteão dos heróis, o que não seria de todo novidade. As narrativas sobre a génese da nossa história heroica é repleta de anti-heróis, reacionários e contra-revolucionários que amargaram o fel da ostracização e das contra narrativas, exibidos como antíteses para a caracterização e distinção entre os “militantes glorificados” e os que carregam o rótulo de “indesejáveis traidores”. Incomoda-me pensar que, um “herói” que se fez na luta armada pela libertação do país possa ter-se desfeito na sua “cruzada contra a pobreza”. Um herói que “não teve medo de ficar rico” (e nem era para ter) e que sempre apregoou um discurso, quase teológico, da prosperidade, consciente ou inconscientemente, se encontre mergulhado em águas turvas. Mas temos “momentum”! Que venha a tempestade e a chuva regeneradora para lavar a alma de “heróis” feitos reacionários e vice-versa. Temos oportunidade única de, a seu tempo, revisitado o divisor de águas, expandir ou contrair a lista de espíritos e fantasmas a invocar quando rememoramos nossos mitos fundadores.
Mas falava de “tomada de posse” antes de, intencionalmente, distrair-me com especificidades sobre heróis e anti-heróis. Atendo-me à vaca fria, os 53 edis eleitos e/ou confirmados pelo Conselho Constitucional também tomaram posse. O espectro dos ritos de posse não poderia ter sido mais claro e mimeticamente reproduzido autarquia municipal a dentro. Na cidade de Maputo assistiu-se ao regresso do esconjurado edil EC, 10 anos depois, como se tivesse atravessado o túnel do tempo, e regressasse de uma longa viagem para clamar seu trono, de certo modo usurpado pelas divergências de forças internas. Qual fénix ressurgindo das cinzas!
Na Matola, a tomada de posse evidenciou a natureza subtil de conluios, cumplicidades e traições com que se articulam os corredores do campo político. Entre choradeiras e visões de ataques epiléticos no acto de deposição de votos, o partidão “açambarcou” votos de onde menos se esperava e assumiu a presidência da assembleia. O tráfico de lealdades partidárias é, pois, um expediente político acionável, se quisermos conter-nos nos interstícios da ética e das regras de jogo, sem insinuações de “conversas por debaixo de tapetes”. Como reza o adágio, “camarão que dorme... a onda leva”!
A decisão do Tribunal Administrativo (mais escolha que decisão ponderada) de “confiscar” o mandato de MA em Quelimane, serviu apenas para facilitar a montagem do cenário para um regresso apoteótico do “edil ciclista”. O troco não se fez esperar. A meio de uma multidão extasiada, alguém foi declarado “persona non grata” em Quelimane. Não que isso tenha algum efeito legalmente vinculativo, mas empresta o estigma com potencial de ser corroborado pela “multidão” que apoiou MA, podendo ser capitalizado, politicamente, a médio e longo termo. Resiliente e exagerado este MA.
No geral, todos os edis que tomaram posse fizeram seus juramentos de guiar-se pelos motivos de campanha e até abraçar aos que não teriam votado neles. É de praxe. Passemos então à conversão das intenções em práticas, num cenário em que, à partida, deverão todos debater-se com “cofres vazios” e “dívidas astronómicas”. Se não forem problemas de “cofres” será, certamente, a pesada “herança de lixo que precisa ser removido”. O reiterado compromisso dos edis, expresso em estilos próprios, alude à necessidade de vencerem a batalha salubridade. Para uns, todo o lixo sai em 48 horas. Para outros, barbas não serão aparadas enquanto a cidade não vira jardim. Mais do que juras de higiene, questões estruturais, relativas aos alcances e limites do processo de descentralização de competências para as autarquias municipais (e provinciais, à caminho) precisam ser resolvidas, no interesse de viabilizar as autarquias como espaços de exercício de poder e de governação local, muito para além de funcionarem como reservatórios de lealdades e fronteiras de controle ou monitoramento político partidário.
Quem também tomou posse, de aposentos privativos especialmente reabilitados, foram alguns dos nossos concidadãos vanguardistas em iniciativas de protecção da soberania e que tem a oportunidade de nos elucidar sobre os meandros das chamadas "engenharias financeiras". Não fiquei muito convencido com a declaração do Ministro das Finanças, na altura, quando dizia que era bom ter dívidas porque só com dívidas saberiam que o país existe e não seriamos esquecidos. Com estas movimentações da PGR, começo a acreditar que todo este imbróglio do endividamento começa a gerar resultados, com particular destaque na sua contribuição para a melhoria das condições do sistema prisional. Tomara que os “primos ricos” sejam solidários com os colegas encarcerados nas mais desumanas condições, país a dentro.
Se, por um lado, persiste o ceticismo quanto aos movimentos da PGR, ocorre-me também que, por vezes, realidades sociais se firmam a partir de gestos e atitudes aparentemente banais que podem ganhar contornos mais sérios e perenes. Os ritos de instituição também operam assim. Alguns pegam e outros não. A título de exemplo, vale lembrar a fachada da indumentária de “chiguiane” que se quis impor, como melhor expressão de rigor e aprumo dos funcionários públicos ante visitas de “divindades” de “nível superior ou central". A sincronização de cores e modelitos seria a máxima expressão de reverência e melhor indicador do “nível organizacional” e funcional das instituições (sem falar das “boladas” das capulanas). Ainda bem que a ritualização “chiguianica” das cerimónias públicas não vingou. Mas, em nota sóbria, nada impede que o simulacro de aproximação entre a justiça e os indiciados do caso da fábula dos peixes e armas se torne realidade. A simular e/ou a brincar realidades se inscrevem e ficam assentes.
A expectativa pela regeneração das instituições é grande e deve ir além de encenações para “recuperação de credibilidades”, através de gestos de exibição simbólica de bodes expiatórios. O movimento em curso, premeditado ou não, deve ser o prenúncio de processos de catarse que se espera que sejam tão serenos quão profundos e abrangentes.
Um brinde aos edis empossados e... exaltemos os inquilinos da nova indústria de hotelaria e turismo penitenciário.