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quinta-feira, 11 julho 2024 08:29

BERTINA LOPES, 100 ANOS

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Bertina Lopes, nascida a 11 de Julho de 1924, na vetusta Lourenço Marques, foi uma artista de um talento assombroso, atravessou longas e diversas épocas, inventou-se e reinventou-se em vários estilos, técnicas e cores, desde o figurativo ao abstracto, numa colossal jornada, iniciada em Moçambique, prosseguida em Itália e profusamente disseminada pelo Mundo. A sua pintura, a sua escultura e o seu ativismo eram, quando morreu, a 10 de Fevereiro de 2012, aos 88 anos, em Roma, aclamados e ela tinha então o beneplácito dos deuses. 

 

Malangatana, na sua verve, na sua exuberância, na sua generosidade, na sua mítica prodigalidade, disse que Bertina Lopes era a mãe e o pai da pintura moçambicana. Esta cordialidade de um génio para outro génio, de um prodígio para outro prodígio, de um fundador para outra fundadora, parece-me mais fecunda, benfazeja, do que aquele ditame que, ao descrever a artista, assaca-nos as suas origens biológicas. O incomensurável génio da pintora deve muito mais ao seu talento portentoso e à sua obstinada ou árdua procura e afirmação do que propriamente ao facto de ter nascido do pai ou mãe com as origens que tinham.

 

A esta distância, poder-se-á dizer que Bertina foi, de facto, uma mulher extraordinária. O seu percurso é notável, o seu dom gigantesco, a sua ética e as suas lutas justas e urgentes. No centro de Roma, no ocaso da vida, tinha a seus pés, presidentes e cardeais, embaixadores e ministros, artistas e admiradores, amigos. Vivia entre quadros, com declarações que lhe deixavam nas paredes e uma indómita vontade de sonhar. Era a sua casa-atelier, a sua “casa-bohème”, como a chamou uma outra soberba figura, a crítica literária Luciana Stegagno Picchio.

 

Bertina iniciara com uma colectiva em 1956 onde expusera pela primeira vez. Morreria exactamente 56 anos depois dessa estreia. A sua pintura tinha uma força alegórica brutal. Quer fosse a que lhe adviesse das figuras espantosas que lhe nasceram das mãos nas suas primícias, fossem os totens que lhe sobrevieram depois ou as cores explosivas que se lhe definem. Foi livre e libertadora, revolucionária e disruptiva, crítica e empenhada, devota do amor e dos seus prodígios. Ainda hoje espantam-me os meninos da Mafalala, ou os retratos, quer das irmãs ou dos seus alunos, ou aqueles olhos municiados de revolta.

 

Nos seus primórdios pertenceu à ala dos fundadores. A sua pintura dialoga com a poesia de José Craveirinha, Noémia de Sousa ou Rui Nogar, com os contos de Luís Bernardo Honwana, com a fotografia de Ricardo Rangel, com a pintura de Malangatana. É a força dos nossos instauradores. Dos que intuem a moçambicanidade, dos que se afirmam na dissensão em relação ao “status quo”, dos que combatem pela justiça, dos que fazem da luta e da afirmação identitária uma desinência. Um projecto de vida. E nisto existe um halo geracional, indubitavelmente.

 

Bertina Lopes é também uma pintora intrinsecamente literária. São míticas as suas criações à volta dos poemas de José Craveirinha ou Noémia de Sousa. Aliás, ela afirmava encontrar na poesia de Craveirinha motivos, causas ou razões para a sua pintura. A sua obra é impetuosa, opulenta, transbordante, rica, viva, enérgica, vibrante, faustosa.  

 

Um dos seus deuses tutelares foi Picasso e o seu cubismo. Claudio Crescentini, autor de “Bertina Lopes: tutto (o quasi)” (2013) disse sobre a artista moçambicana: “Após uma primeira esboçada, ainda que delicada, aproximação à arte, a pintura de Bertina Lopes impôs-se, desde logo, pela sua forte figuração expressionista e pelo compromisso político dos conteúdos, arrastados depois por uma subjectiva nova leitura do signo de Picasso”. Mas ela não se tornou epígono dos mestres. Soube criar a sua própria identidade, a sua personalidade, os seus referenciais. Começou por ser visceralmente moçambicana e seria com o tempo profusamente universal. Picasso, Braque, Matisse não impediram a sua originalidade, a sua fulgurante personalidade.

 

Num concurso para um painel do Banco Nacional Ultramarino (hoje Banco de Moçambique), ganho por Garizo do Carmo, Bertina Lopes escolhe como proposta a história do ritual do lobolo. Escusado será dizer que ela jamais ganharia tal concurso. Craveirinha fez a defesa da sua escolha e da sua ética como artista: “Foste o único artista de Moçambique inteiramente moçambicano na obra que apresentaste”. Aliás, o poeta irá motivá-la a prosseguir nessa senda identitária, “do lugar onde temos os pés”. Estávamos nos efervescentes anos 60.

 

Bertina estudara em Portugal na António Arroio e na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Regressada ao seu país de origem ensina desenho em escolas da então Lourenço Marques ao longo de 9 anos. Em 1953 participa no concurso anual de artes plásticas. Na sede da Associação Africana dá aulas de desenho e pintura decorativa e dirige a escola de arte infantil da agremiação. Em 1958 faz a sua primeira individual: desenho, guache e óleo. O “Paralelo 20” faz-lhe importantes encómios. Em 1960, na Poliarte, outra individual. Eugénio Lisboa redige o texto do catálogo. Divisa-lhe o “espírito de procura permanente, irrequieto, insaciável”. Afinal, o que irá ser a sua divisa e a sua divícia, a sua herança e a sua facúndia. A figura está no centro dessa busca. O seu grito visceral. Para além do domínio da técnica, da cor ou da expressão, a natureza social da sua expressão.

 

É dessa época a exposição de 23 óleos quase todos baseados nos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa numa iniciativa patrocinada pelo Núcleo de Arte. Os dois poetas são a eloquência da revolta, a veemência da luta, a expressão da moçambicanidade. A invenção dessa moçambicanidade. O libelo e a indignação. Bertina dá primazia ao figurativo. Afinal, a poesia de Craveirinha e de Noémia não são o abstracto, antes pelo contrário. Começa a sua afirmação.

 

Participa em colectivas, faz individuais. Quando o ar se torna irrespirável, nesses ominosos anos 60, decidi partir. Tinha 9 anos de ensino e já era uma artista de gabarito. O seu casamento com o poeta Virgílio de Lemos dissolvera-se, tinham dois filhos. O cerco apertava-se. Primeiro em Lisboa, com uma bolsa da Gulbenkian, depois Roma com uma subvenção da mesma fundação. Conhece artistas, mergulha no meio, estabelece-se longe da repressão. Casa-se com Franco Confaloni. Em 1965 torna-se italiana. Perde a nacionalidade portuguesa.

 

A sua obra ganha mundo: Lisboa (1961), Porto (1963), Roma (1970), Veneza (1975), Madrid (1976), Badgade (1981), Maputo (1982), Luanda (1983), Praia (1985), por aí fora. Prémios, como Rachel Carson, ou Gabriel Dinunzio. Segue-se-lhe  o reconhecimento, a veneração, as homenagens. Se nos anos 50 evocava Luisa Chewene, nos anos 60 Fanisse, nos anos 70 Mussunda, o grito, a súplica, a violência, a noite, o tótem, em 1975 virá o sol, a festa e a esperança. O seu afro país Moçambique sempre de permeio. A morte do Presidente Samora devolve-lhe o grito de revolta em 1986. Ela quer que seja o último. No entanto, sempre as suas raízes, a esperança que sobrevirá nos anos 90, mas também a morte e a pungente evocação do filho Virgílio. Depois o espaço, o seu infinito potencial. A sua identidade aprumada. As suas metáforas. África, essa África adentro. Em Julho de 1994 realiza uma grande exposição em Maputo. Elusiva e ostensivamente colorida, a África da infância refulge nas suas obras. Em 1982 realizara no Museu Nacional de Arte uma importante exposição. Estes serão os dois marcos pós-independência de Bertina em Moçambique. Rui Nogar, num colóquio alusivo à sua obra, aquando da exposição de 82, descreveu: “Nos quadros da Bertina Lopes vemos uma conquista, desespero, ódio ao ódio”. Bertina, acrescentava o poeta, está sempre presente “com violência” na sua obra: a sua tela denota sempre “explosão cromática”, sobretudo “explosão humana”.

 

Luciana Stegagno Picchio escreveu um dos mais belos textos sobre Bertina: “Antiga como a África dos seus primórdios de fidelidade, moderna e futura como a Europa da sua sabedoria e escolha artística”. Ali estão os signos, as metáforas, as máscaras, os tótemes. Ali está a busca incessante. Ali está a sua identidade. Os rostos e os gritos, a esteira e a serpente, os azuis e os amarelos, os vermelhos, o preto e branco. África sempre, no seu luto perpétuo, na sua noite escura, na sua esperança obstinada. Uma obra ontológica. Bela, onírica, elusiva, ostensiva. Prodigiosa.

 

Conheci-a nas paredes da AEMO, conheci-a na casa de José Craveirinha e nas conversas com o poeta da Mafalala, conheci-a na cumplicidade com o Rui Nogar. Conheci-a de ouvir Luís Bernardo Honwana falar esplendorosamente dela. Ou nos testemunhos do António Pinto de Abreu que voltava de Roma sempre efusivo, inflamado, ardoroso. Ou do Tomás Viera Mário. Ou da Paola Rolletta, activamente vigilante sobre o destino da sua obra. Conheci-a dos testemunhos longínquos do Virgílio de Lemos. Sabia dos amigos que a visitavam em Roma, que deixavam escrito nas suas paredes as suas profissões de fé, ali onde ela os recebia, no centro da capital italiana, sobre os telhados da cidade, lugar agora órfão dela e da sua obra.

 

Hoje passam 100 anos sobre o seu nascimento. Sei das declarações de intenções de resgatar a sua obra. Ou dos avisos de que esta, com a sua morte primeiro e depois do Franco, perder-se-ia. Mas nós somos pródigos nos desígnios e incapazes de fazer o que quer que seja. Agora, é tarde. Lá fora publicam-se livros, a sua obra é referenciada, o seu nome celebrado. Aqui, como sempre, ficamo-nos pelas bravatas. Nada fazemos. Nem por Malangatana, nem por Bertina, nem por Craveirinha, nem pela Noémia, nem pelo Fany Mpfumo. Não fazemos por nós. Somos ineptos, acintosamente inábeis. Somos moçambicanamente inadimplentes.

 

KaMpfumo, 11 de Julho de 2024

quarta-feira, 10 julho 2024 13:43

As viagens dos candidatos presidenciais

No preâmbulo de qualquer eleição presidencial é normal que os candidatos façam viagens, incluindo internacionais, umas divulgadas e outras ocultadas, que me fazem lembrar despedidas de solteiro nas vésperas do casamento. 

 

Historicamente, os ingredientes de despedidas de solteiro, sobretudo os ocultos, quando vêm à superfície têm sido o prenúncio da perturbação e até do desfecho da relação entre o casal e com consequências na família e amigos, tudo por conta de um e outro ingrediente tóxico da despedida de solteiro.

 

E tal como reza o registo histórico das despedidas de solteiro, a par da máxima de que a história repete-se, receio por ingredientes tóxicos nas viagens dos candidatos presidenciais nas vésperas de eleições.   

 

De toda a maneira, e entre portas, tenho fé na prudência e sentido de Estado de qualquer um dos candidatos presidenciais para as eleições de 09 de Outubro de 2024, que me levam a acreditar que nenhum deles, nas suas viagens e não só, tenha feito compromissos ou actos que possam lesar o bem-estar e a integridade do país.    

HelioGuilicheNOVO_5.jpg

segunda-feira, 08 julho 2024 06:53

Francisco Miranda: Voando nas asas da história

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Passavam alguns anos e era comum um sketch publicitário que literalmente dizia “saber voar nas asas da história”. Para o delírio dos ouvintes era um slogan que roçava aos píncaros do exagero. Contudo, a nossa companhia de bandeira operava entre as vicissitudes dessa história e as dinâmicas do quotidiano. Os principais protagonistas, contudo, continuavam dignos das menções. Francisco Miranda e outros tantos, se notabilizaram e foram os protagonistas destas peripécias.

 

Nascido em Goa, no longínquo ano de 1957, na Ilha então colónia Portuguesa. Francisco Miranda era o segundo filho de Francisco Vasco António Miranda e Sousa e de Maria de Jesus da Silveira Lorena Miranda; o ponto de equilíbrio de toda a família. Nenhuma história elucida o não ter sido Júnior. Eventualmente, assumiu, ele próprio, seu destino como Sénior.

 

Pai trabalhador dos correios e mãe funcionária da Direcção de Exploração dos Transportes Aéreos (DETA), o que explica a paixão pelas asas. Viveu em Nampula, desde os 3 meses e assimilou-se de cultura emakhuwa. Passou a conhecer a história pela língua, gastronomia e aquela natureza esplendorosa. Aprendeu tudo sobre Musa Mohammad Sahib Quanto, Omar bin Nacogo Farallahi e o sultão Ibrahim. Os desígnios e exigências de uma milenar civilização encantaram sua caminhada e fascinaram seus apetites.

 

Conheci-o jovem, pelos passeios das escolas geminadas Liceu Gago Coutinho e Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, construídos nos anos 1969-70. Deambulava por entre os jovens da sua idade e mais novos, espalhando uma incaracterística e invulgar rebeldia. O Che Guevara dos nossos tempos. Vezes sem conta, passeava com os inesquecíveis irmãos metralhas. A mangueira sagrada era seu referencial. Ali terminavam todas as disputas e conflitos potenciais. Com ele conheci essa famosa mangueira sagrada. Minha postura apegada a serenidade e  a apologia de não-violência, me afastaram, definitivamente, desse local.

 

Chico tinha uma desenvoltura física de quem vivia carregando pesos. Todavia, não praticava modalidades federadas. Jogava de tudo um pouco e adorava sua bicicleta. Apesar da sua forma mais volumétrica era afável, cavalheiro e impunha respeito aos mais jovens. Criamos uma empatia que perdurou ao longos de décadas. Fez várias confidências, desde o cachorro Camões que perdera um olho em circunstâncias pouco esclarecidas e, desde então, tinha uma pala na vista danificada. Gargalhava com o episódio da cobra verde, completamente inofensiva que estava prostrada num galho de acácia e que, de forma consciente, fora deixada no tampo da mesa da elegante professora de Biologia. Ela desmaiou em plena sala. Estas eram magistrais conversas; episódios que o fizeram cidadão e maturado para posterioridade.

 

Os estudos sempre lhe foram enfadonhos, apesar de muito inteligente. Questionava métodos e a rigorosa disciplina revolucionária. Vibrou, no entanto, com a liberdade e com o mesmo sol de Junho de que sempre se orgulhou. Chico, assim o designamos como jovem, fez uma opção pela aviação ainda em Nampula. Foi despachante de tráfego e, eventualmente, a empresa TTA foi responsável pela sua formação e contratação. Era uma empresa de fumigação aérea que ajudou e comparticipou na formação aeronáutica de mais de uma dezena de jovens, não só de Nampula, mas de todo o Norte de Moçambique. Outros jovens atingiram o patamar profissional, ingressando nas Linhas Aéreas de Moçambique, LAM, criada em Maio de 1980, e que assumira as obrigações celebradas pela DETA, sua antecessora.

 

Francisco Miranda se assumiu como homem dos céus, esses que optam por viver mais próximo de Deus do que da vida mundana. Por cima dos extractos, cirros e cúmulos. Vivia sentindo a plenitude da liberdade e dos avanços tecnológicos. Nas alturas, os segredos são disciplina e rigor, postura metódica e responsabilidade. Nosso bom piloto passou a leitor ferrenho de artigos sobre aviação. Estudava seus manuais como poucos. Num ápice, se firmou como parte dos talentos da companhia de bandeira que tem de tudo um pouco.

 

Os amigos e colegas exaltaram essa mudança. Era como se nós próprios tivéssemos chegado ao cume da terra. Céus eternizados pela amizade e cumplicidade. Depois, seguíamos para o aeroporto para assistir as aterragens e decolagens. Aquela diminuta pista dos antigos dakotas e de aviões de pulverização era, agora, o tapete do Miranda. Aquela mesma pista ruidosa e dos calafrios arrancava aplausos dos passageiros.

 

Miranda vivia nos céus com um naipe de outros colegas como Carlos Soares, José Cachopas, ambos falecidos, Álvaro Lobo, José Ferreira da Silva, Raul Fernandes, Mamede Habbal, Noormahomed e, com eles, as lindíssimas jovens nampulenses. Ter um amigo de longa data, da cidade capital do norte, não era só um prazer, era a certeza de um voo seguro e agradável. Até aquela caixinha de refeições extra, servia para mostrar a família o que se comia nos ares e que os nossos amigos ofereciam. Voar, a rigor, era o sonho de milhares de moçambicanos.

 

A guerra de desestabilização agudizava. Viajar por estrada representava a aventura trágica e o próprio calvário terrestre. Região centro era o tira-teimas dos aventureiros. As histórias sobre as atrocidades e os camiões calcinados pelo fogo eram arrasadoras. Convergíamos todos para os céus. Conseguir um lugar nos aviões dependeria de uma “cunha”. Os nossos zelosos aviadores reinventavam a nova fronteira da geografia. Pela primeira vez viajei no cockpit. Adrenalina pura. Ele, ali bem perto, óculos de sol e controlando minhas emoções. Um voo de fazer perder todos os apetites. Todavia, experiência que não ouso repetir, agora que a segurança aérea se intensifica. Nascemos para viver na terra e juntos dos nossos. Aqui as florestas e rios tem outra e rara beleza.

 

Francisco Miranda subiu pelos degraus da avaliação e se consagrou como destacado piloto Comandante. Se sentou aos manípulos do DC-10. Tempos áureos da companhia. Ouvimos falar da sua habilidade e sangue-frio. Era a fibra nortenha nos céus do mundo. Eram as cartas de correio que o seu pai Miranda tanto selou que viajavam, agora, no porão transportadas pelo Júnior. Antes, eram os sonhos e as vidas de milhares de passageiros que duplicavam a confiança de uma chegada serena e tranquila, mesmo em tempo de turbulência.

 

Miranda criou cumplicidades com Marcelino dos Santos. Seu tio favorito. Transportou seu ídolo e seus adjuntos centenas de vezes. Falava sobre ele com gáudio, vivacidade e exacerbada emoção. Marcelino lhe enchia as vistas e os egos. Assimilou essa postura de guerreiro intelectual. Combatente aéreo irrepreensível. Copiou os segredos de liderança determinada na tomada de decisões. Reconverteu-se no revolucionário sem bases marxistas, todavia, firme e consequente, como ele próprio dizia com atitude de Amélia Mary Earhart, essa pioneira da aviação no mundo, de quem ele leu com apreço. Amelia Earhart desapareceu no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland, enquanto realizava um voo ao redor do globo, no longínquo 1937. O mundo se rendeu a seus pés.

 

Escutei, várias vezes, o comentário e a façanha de uma aterragem de emergência e bem sucedida do DC-10. Valeu a bravura do nosso Chico. Os elogios rasgados, se sucederam. Depois, seu nome passou para o radar das grandes companhias do médio oriente e outros quadrantes. A sua LAM estava de sobreaviso. Muitos abandonaram a companhia. Miranda permaneceu. Os tempos viram essa LAM se reconfigurando num mercado pouco favorável. Vieram as mudanças na frota. Contrariado, mantinha visão desse passado de glória. Depois, viu seu filho trilhar seus passos. Era um jovem Bruno Miranda que qualificava no estrangeiro e dava continuidade ao clã Miranda da aviação.

 

Igualmente, Francisco Miranda chegou a chefe de segurança de voo e instrutor. Mesmo reformado, por imperativos de idade, a sua LAM era a mais notável e indiscutível referência. Vivia preocupado com os novos tempos e dinâmicas. Achava que uma gestão meticulosa faria da empresa um pequeno El dourado no oceano da carestia e ausência de liquidez.

 

Aos 67 anos e debilitado por diagnósticos pouco consentâneos viu seu corpo minguar e degradar. Recorreu aos especialistas da terra e ninguém conseguiu prover o milagre dos céus. O seu lado mais informal e militante sucumbia. O checklist não condizia com o rigor e critérios mínimos de um voo com segurança. Em tarde de finais do mês de Junho, mês de todas as liberdades, que ele sempre defendeu, o Macua natural de Goa fez a sua aterragem final. Virou estrela. Está onde sempre gostou de viver, nos céus e rodeado de anjos. (X)

sexta-feira, 05 julho 2024 07:44

Macacos me mordam! Diabos me levem!

AlexandreChauqueNova

Toda esta enxurrada que parece levar-nos ao pricipício, onde nos esperam as verrumas do diabo, pode não ter volta, não haverá espaço para o recomeço. Vivemos dias das maiores incertezas, ninguém sabe para onde vamos nem o que nos espera. As crianças, como guerreiros desarmados  nas savanas, enfrentam os seus próprios docentes nas escolas, encurralando-os como o fazem as hienas em matilhas ferozes nos momentos de desespero, desmentindo assim a realeza dos leões.

 

Perdemos o medo, e quando isso acontece significa que já não há outro caminho, já não há mais montanha para subir, então vamos morrer vivos nos combates, tendo a música como estandarte e toda a poesia das matas da libertação como azagaia lançada no espaço. Não podemos vacilar, o novo amanhecer está hipotecado. As ribanceiras do nosso país descem todas para o inferno, e quando é assim é preciso cingir o lombo e mudar o rumo, nem que seja pela última vez.

 

O pão é escasso nas nossas mesas, dançamos nas noites o remoínho do “nhau” que ressurge do estômago vazio, e vamos dormir sem fazer sexo porque estamos com fome, somos a geração dos novos escravos. Os feudais voltaram com outras roupas, estão aqui... na nossa casa. Organizam seminários e palestras em hotéis de luxo para nos enganarem, para falarem da nossa vida, daquilo que devemos fazer, e no fim servem-nos chamussas e rissóis e sumos duvidosos e ficamos contentes com isso. Os ministros do governo anunciam rigozijados, investimentos bilionários das multinacionais como se o dinheiro fosse nosso, como se os proventos viessem para nós!

 

A EN1 está absolutamente rebentada, mas se o rosto do homem é um pouco a janela da alma, então nós também estamos rebentados, não somos nada. É por isso que nos cavalgam, fornicam a nossa dignidade à frente dos nossos filhos. Por exemplo, no tempo em que Helena Taipo era governante, os chineses de uma empreitada qualquer na cidade da Beira, defecavam em sacos plásticos e mandavam os moçambicanos recolher a merda deles.

 

Temos no nosso país, compatriotas que segurariam com firmeza, concerteza, os remos da almadia onde todos nós iamos caber e navegaríamos em marés tranquilas, mas esses marinheiros da esperança foram abatidos como lobos solitários. Outros fugiram e remeteram-se ao silêncio com medo de que sejam os próximos. Já não temos baluarte, o que nos resta é construir outra arca para enfrentar as tempestades que virão dos ventos que estão sendo semeados na nossa terra.

 

O receio é de que o sol não nasça mais, ou nasça com luz de sangue a gotejar sobre nós. Somos nós próprios, em apoio a eles, que vamos criando condições para a última chacina. Seremos, com este andar das coisas, enterrados sem túmulo, outra vez como no tempo das correntes ao pescoço. Morreremos sem glória. Nem nós o povo, nem os combatentes da libertação, que se esvaziaram na ganância.

 

Macacos me mordam! Diabos me levem!

Adelino Buqueeeee min

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