Tenho seguido a campanha eleitoral em curso, particularmente a que ocorre nas autarquias da área metropolitana de Maputo. Por ora, e já passa uma semana de campanha, o que me ressalta mais são duas observações.
A primeira: o incómodo generalizado provocado pelo lixo estético por conta da colagem de cartazes, sobretudo em locais inapropriados. A segunda: até agora os concorrentes já prometeram de tudo menos cerveja. Por acaso faz algum sentido, tendo fé de que não se promete um dado adquirido.
Sobre a primeira observação, cito, em jeito de amostra do incómodo, o que duas crianças de onze e nove anos disseram na manhã do primeiro dia de campanha: “Meu deus a que horas sujaram a cidade? Oxalá que quem tenha feito isto seja também rápido a limpar”. Em seguida, a outra criança acrescentaria: “O importante é que quem tenha feito isso não suje nunca a cidade”.
No que tange (risos) a segunda observação, a de que nesta campanha tudo está a ser prometido menos cerveja, não será de admirar se alguém concluir que a avaliar a quantidade holística das promessas, este país (simbolizado pelas autarquias em pleito) não existe. Caso exista, provavelmente seja no quadro dos efeitos do que não se promete.
Seguramente que num país nestas condições o mais provável, depois da data de votação, é a ocorrência de uma amnésia total e completa quer por parte dos que prometem quer por parte dos prometidos. Na verdade, a urna do voto, que deveria simbolizar o pacto entre eles, acaba por ser o túmulo das promessas.
Para a posteridade, e desta vez com alguma serventia – a do tipo o crime deixa sempre rastos - fica o lixo estético a sinalizar responsabilidades, cabendo aos (com)prometidos agir. Mas lá está: alguém sóbrio nessa altura? Ou caberá aos petizes citados? Se sim, ainda ter-se-á que aguardar por alguns pleitos eleitorais.
Nando Menete publica às segundas-feiras.
Há dias, e poucos, estive numa casa de pasto para um encontro com o Marutissa, meu primo. Fui o primeiro a chegar. A ele, que vinha a caminho, respondi de que estava na “cadeira 38”. “Ok” foi a resposta.
Este sábado, 23 de Setembro de 2023, ainda pela manhã, recebo uma chamada da empresa de transporte que me informa o cancelamento da reserva da cadeira 38, sugerindo como alternativas a 36 ou a 40, caso quisesse ficar em lugar próximo. Optei pela 40. O telefonema termina com a informação de que eu seria “logo logo” contactado para alguns detalhes que ainda careciam de confirmação.
Por conta do fim-de-semana longo, programara que o passaria na terra natal, Inhambane. Enquanto esperava pelo retorno da chamada veio-me à memória de que era a primeira vez, em 22 anos, que não viajaria na cadeira 38. À boleia da lembrança, também a da razão do hábito de viajar na cadeira 38.
“Lamentamos informar de que a partida do autocarro foi reprogramada para o próximo dia 26 de Setembro pelas 11H30”. O prometido telefonema que me comunicava a amarga notícia, acrescentando que me assegurava que era a única alteração. Resumindo: não viajaria na cadeira 38.
Porque a ida à “Terra da Boa Gente” era mais do que passar um fim-de-semana longo, prontamente anui. Na verdade a mente já havia iniciado uma outra viajem: a da lembrança da razão de sempre viajar na cadeira 38.
Natal de 1969. Dois irmãos viajam de Inhambane à então Lourenço Marques, hoje Maputo, ou no trajecto inverso. O mais velho (Lázaro) ia sentado na cadeira 37. O mais novo (Abel) ia ao lado do motorista. O mais velho, uma hora depois da partida, e de forma insistente, sinalizava com o indicador para que o mais novo chegasse a ele.
“O que será que o mano Lázaro quer?”. Interrogava-se o mais novo à medida das chamadas. A insistência fora tal que acabou por aproximar. “Sempre que viajares de autocarro sente na cadeira 37 ou 38. É mais seguro em caso de acidente ou de qualquer emergência”.
Soube desta recomendação nas exéquias fúnebres de quem ia sentado na cadeira 37. Desde então, passam 22 anos, que estar numa “Cadeira 38” é o mesmo que dizer que estou bem instalado, em lugar seguro e que se recomenda. Daí o “OK” do primo Marutissa, por sinal o caçula de quem era recomendado a escolher um lugar seguro para viajar.
Esta terça-feira, 26 de Setembro, chego a terminal na hora prevista. Não era o ambiente normal de azáfama de uma terminal de transportes terrestres. Estava com áurea de proximidade e aconchego. No semblante de cada presente a sensação de celebração da despedia de alguém querido que partia pela primeira vez para o estrangeiro.
Cerca das 09H00 entro no autocarro carregado de curiosidade sobre quem estaria sentado na cadeira 38. A térrea-moça confere o assento no meu bilhete e a caminho da cadeira 40, na 37 estava o seu eterno ocupante. Estranhamente não me disse o habitual “Tenha a bondade” enquanto indica a cadeira 38. A razão: a cadeira 38 já estava ocupada pelo seu companheiro de viajem do natal de 69, o seu irmão Abel.
“Estimados, a vossa atenção. Vamos iniciar a viajem e o ponto de partida será o regresso ao passado com a duração de 99 anos, prevendo que a chegada seja no dia 16 de Setembro de 1924”. Era a térrea-moça que em seguida pediu que se fizesse silêncio.
No silêncio da viajem ao passado foram passados em revista, na forma e no conteúdo, a nobreza das 99 primaveras do ocupante da cadeira 38: Abel Lopes Menete.
No dia 16 de Setembro de 1924, na chegada a Jangamo, Inhambane, o momento foi de alegria contagiante pelo regresso de quem, 15 anos depois do seu nascimento, deixara a terra natal rumo à então Lourenço Marques, a terra prometida.
10H30. A térrea-moça anuncia a derradeira partida e de que se fariam duas paragens antes do destino. A primeira no Bairro 700, a saudosa morada térrea do ocupante da cadeira 38, e a segunda no cemitério da Texlom. E daqui a decolagem final até ao reino dos céus. E assim aconteceu por volta do meio-dia.
Por algum motivo fiquei em terra na primeira paragem. Da madrugada de chuva que corre, e que abençoara a viajem, soube de que a viagem correra bem e que o ocupante da cadeira 38 fora recebido com uma honrosa e estrondosa salva de palmas durante 38 segundos. No final, a saudação: Cadeira 38, Saravá!
Maputo, 27 de Setembro de 2023.
Texto em jeito de homenagem a Abel Lopes Menete (16/09/1924 – 23/09/2023), familiar, amigo e antigo quadro do Ministério da Informação (1974-1983) e Administrador da Escola Central do Partido Frelimo (1983-2003).
Várias notícias avançaram na semana passada que está a ser negociado um acordo extrajudicial para Moçambique deixar cair o caso contra o Credit Suisse que poderá envolver uma compensação de cerca de 100 milhões de dólares.
Um comunicado conjunto emitido hoje pelo Ministério da Economia e Finanças (MEF) e a Procuradoria Geral da República (PGR) anunciou uma conferência de imprensa para amanhã, para se falar "sobre o processo do Estado moçambicano em Londres, envolvendo o Credit Suisse (CS)”.
De acordo com a imprensa estrangeira, as negociações em curso envolvem a PGR e o banco suíço UBS. Recorde-se, este banco adquiriu o CS em Março deste ano e, em Agosto, decidiu integrá-lo totalmente, e o CS vai desaparecer como marca de banco de retalho até 2025.
O CS, que se debatia com graves problemas financeiros, foi vendido por 2,8 mil milhões de USD ao UBS em Março, quando na bolsa de valores suíça valia mais de sete mil milhões de USD. O UBS herdou os processos judiciais do Credit Suisse, incluindo a exigência de Moçambique de que as garantias dos empréstimos fossem declaradas nulas e sem efeito, e que o Credit Suisse pagasse uma compensação.
Até muito bem recentemente, nomeadamente em Junho, o CS ainda tentou convencer a secção comercial do processo do Tribunal Supremo de Londres para que o caso fosse arquivado, alegando que a falha do governo moçambicano em divulgar documentos significava que não podia haver um julgamento justo.
Como o Tribunal recusou essa alegação e marcou o julgamento para iniciar na terça-feira, 3 de Outubro, o UBS parece ter mudado de abordagem e quer evitar um despique nas barras com o potencial de perder, mas também com o risco de danos reputacionais de grande monta.
A cifra de 100 milhões de USD foi avançada por fontes do UBS à imprensa internacional como um dado adquirido. Os advogados do UBS estão empenhados em evitar que a disputa vá a julgamento e pressionam por um acordo, escreveu o londrino Financial Times, na sua edição de 27 de Setembro. Amanhã, ficaremos a saber se o Estado moçambicano aceita esse valor e decide abandonar a acção em Londres. Para já, consta que os advogados da PGR estão de mangas arregaçadas para o julgamento.
Mas 100 milhões de USD para o caso vertente parecem amendoins. Aceitar isso seria mais um calote. Eis as razões:
Para “Carta”, 100 milhões de USD é um valor insignificante relativamente aos danos de reputação que o banco poderá sofrer durante 13 semanas longas de julgamento, em que vão ser expostas as fragilidades gravosas da "compliance" do Credit Suisse.
A confissão dos três banqueiros do CS (Andrew Pearse, Detelina Subeva e Surja Singh envolvidos no calote) em sede da justiça americana mostra que a possibilidade de sucesso da PGR é grande, também porque Jean Boustani confessou nos EUA ter pago subornos a funcionários moçambicanos. Neste sentido, a anulação das garantias soberanas pode ser conseguida por parte de Moçambique. Aliás, a oferta do UBS é também um reconhecimento de culpa.
Ora, o calote adiou a vida de milhões de moçambicanos, afugentou os doadores do apoio orçamental e a nossa economia nunca recuperou desde então. Por isso, 100 milhões de USD parecem-me insultuosos.
A PGR nunca revelou o valor da sua acção em Londres. O que sabemos é o que a imprensa internacional tem revelado, ela que tem acesso aos advogados londrinos da PGR. No passado dia 28 de Setembro, o The Wall Street Journal, de Nova Iorque, escreveu o seguinte: “UBS Poised to Settle Mozambique’s ‘Tuna Bonds’ Lawsuit Against Credit Suisse/The southern African nation had sought as much as $2.5 billion By Margot Patrick Updated Sept. 28, 2023 2:50 pm ET)”.
Ou seja, para além da anulação das garantias soberanas ilegais, Moçambique exige uma compensação de 2.5 mil milhões de USD.
Por sua vez, a 27 de Setembro, o jornal Financial Times, de Londres, escrevia que “além dos danos pelos alegados subornos, a reclamação de Moçambique incluía mais de 1000 milhões de USD pela retirada do apoio financeiro internacional (apoio internacional dos doadores), mais de 260 milhões de USD por custos de dívida mais elevados e cerca de 100 milhões de USD em taxas sobre os empréstimos”, citando um documento do Supremo Tribunal do Reino Unido.
Qualquer um destes valores coloca como irrelevante a oferta do UBS, uma oferta de certa forma arrogante e desprezível se tivermos em conta os biliões de USD de lucros que o banco tem vindo a fazer, incluindo agora depois da fusão com o Credit Suisse.
Em finais de Agosto deste ano, o UBS anunciou um lucro líquido recorde de 29,9 mil milhões de USD, sete vezes superior ao registado no mesmo período do ano passado. O UBS disse na altura que previa poupar 10 mil milhões de dólares até ao fim de 2026, graças à fusão com o Credit Suisse.
O USB nada em dinheiro e até renunciou à garantia de 9 mil milhões de USD dada pelo Governo suíço para adquirir o Credit Suisse, como afirmou várias vezes a ministra das Finanças da Suíça, Karin Keller-Sutter.
A oferta de 100 milhões de USD é ainda mais desprezível considerando que o credor suíço se tem concentrado em resolver disputas legais desde que concordou em assumir o controlo de seu antigo rival em Março e noutros casos está a considerar pagar compensações bilionárias.
Na quarta-feira, de acordo com o FT, o Tribunal Superior de França disse que daria o seu veredicto final em Novembro num caso de evasão fiscal de longa data do UBS, no qual o banco contestou uma multa de 1,8 mil milhões de euros.
No mês passado, o UBS concordou em pagar 1,4 bilião de USD para resolver uma investigação regulatória dos EUA sobre a suposta venda indevida de títulos hipotecários residenciais no período que antecedeu à crise financeira de 2008, encerrando o último caso remanescente movido pelo governo dos EUA contra Wall Street.
O banco também concordou em pagar 388 milhões de dólares aos reguladores dos EUA e do Reino Unido pelas falhas do Credit Suisse em torno do colapso da Archegos Capital, que causou uma perda comercial de 5,5 mil milhões de dólares ao credor falido e ajudou a provocar o seu desaparecimento.
O UBS também resolveu uma acção movida pelo Credit Suisse contra um blog popular de Zurique, Inside Paradeplatz, sobre o que alegou serem comentários de leitores abusivos e não verificados.
Por último, o UBS tem pouco menos de 10 biliões de USD em provisões e passivos contingentes para litígios e questões regulatórias, de acordo com estimativas do JPMorgan.
Em face de tudo isto, é óbvio que Max Tonela e Beatriz Buchile devem declinar a oferta dos 100 milhões de USD e obrigar o UBS a subir a fasquia. 100 milhões de USD? Shame on you UBS! Vergonhoso! (M.M.)
*Texto escrito minutos antes de recebermos o despacho da “Lusa” revelando o acordo anunciado pelo UBS.
I
John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados aos em Londres e na cidade de Luxemburgo.
A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.
Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.
Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.
António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.
No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.
Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.
Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.
- Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.
Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.
O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:
- Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.
Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.
Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.
A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.
- Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.
Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.
John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.
24h após a realização da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.
O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.
Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.
Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.
Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual” com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.
Inadvertidamente pelas cordas vocais do “nyanga” fez-se ouvir:
- Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.
Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.
O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.
II
Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.
Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.
Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.
Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.
O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.
Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.
Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.
Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.
O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.
Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam a manhã que acabava de nascer.
Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.
Fez-se silêncio, os pássaros calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.
O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.
Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.
O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.
O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso.
Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.
Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam.
A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.
Benedito o comparsa de Mário amalucou.
Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.
A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se mais abandonados.
Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.
Há dias, e poucos, estive numa casa de pasto para um encontro com o Marutissa, meu primo. Fui o primeiro a chegar. A ele, que vinha a caminho, respondi de que estava na “cadeira 38”. “Ok” foi a resposta.
Este sábado, 23 de Setembro de 2023, ainda pela manhã, recebo uma chamada da empresa de transporte que me informa o cancelamento da reserva da cadeira 38, sugerindo como alternativas a 36 ou a 40, caso quisesse ficar em lugar próximo. Optei pela cadeira 40. O telefonema termina com a informação de que eu seria “logo logo” contactado para alguns detalhes que ainda careciam de confirmação.
Por conta do fim-de-semana longo programara que o passaria na terra natal, Inhambane. Enquanto esperava pelo retorno da chamada veio-me à memória de que era a primeira vez, em 22 anos, que não viajaria na cadeira 38. À boleia da lembrança, também a da razão do hábito de viajar na cadeira 38.
“Lamentamos informar de que a partida do autocarro foi reprogramada para o próximo dia 26 de Setembro pelas 11H30”. O prometido telefonema que me comunicava a amarga notícia, acrescentando que me assegurava que era a única alteração. Resumindo: não viajaria na cadeira 38.
Porque a ida à “Terra da Boa Gente” era mais do que passar um fim-de-semana longo, prontamente anui. Na verdade a mente já havia iniciado uma outra viajem, a da lembrança da razão de sempre viajar na cadeira 38.
Natal de 1969. Dois irmãos viajam de Inhambane à então Lourenço Marques, hoje Maputo, ou no trajecto inverso. O mais velho (Lázaro) ia sentado na cadeira 37. O mais novo (Abel) ia ao lado do motorista. O mais velho, uma hora depois da partida, e de forma insistente, sinalizava com o indicador para que o mais novo chegasse a ele.
“O que será que o mano Lázaro quer?”. Interrogava-se o mais novo à medida das chamadas. A insistência fora tal que acabou por aproximar. “Sempre que viajares de autocarro sente na cadeira 37 ou 38. É mais seguro em caso de acidente ou de qualquer emergência”.
Soube desta recomendação nas exéquias fúnebres de quem ia sentado na cadeira 37. Desde então, passam 22 anos, que estar numa “Cadeira 38” é o mesmo que dizer que estou bem instalado, em lugar seguro e que se recomenda. Daí o “OK” do primo Marutissa, por sinal o caçula de quem era recomendado a escolher o lugar seguro para viajar.
Esta terça-feira, dia 26 de Setembro, chego a terminal na hora prevista. Não era o ambiente normal de uma terminal de transportes e estava com áurea de proximidade e aconchego. Nos semblantes dos presentes, embora não se vislumbrassem sinais de que fossem viajar, a sensação de que viajavam e a de celebração da despedia de alguém que partia pela primeira vez para o estrangeiro.
Perto das 09H00 entro no autocarro carregado de curiosidade sobre quem estaria sentado na cadeira 38. A “térrea-moça” confere o assento no meu bilhete e a caminho da cadeira 40, na 37 estava o seu eterno ocupante. Estranhamente que desta vez não disse “Tenha a bondade”, enquanto indica a cadeira 38. A razão: na cadeira 38 já estava ocupada pelo seu companheiro de viajem do natal de 69: o seu irmão Abel.
“Estimados, a vossa atenção. Vamos iniciar a viajem e o ponto de partida será o regresso ao passado com a duração de 99 anos, prevendo que a chegada seja no dia 16 de Setembro de 1924”. Era a “térrea-moça” que em seguida pediu que se fizesse silêncio.
No silêncio da viajem ao passado foram passados em revista, na forma e no conteúdo, a nobreza das 99 primaveras do ocupante da cadeira 38, Abel Lopes Menete.
Dia 16 de Setembro de 1924. Chegada a Jangamo, Inhambane, marcada pela alegria contagiante do regresso de quem deixara a terra natal, 15 anos depois do seu nascimento, rumo a então Lourenço Marques, a terra prometida.
10H30. A “térrea-moça” anuncia a partida e de que se farão duas paragens antes do destino. A primeira no Bairro 700, a saudosa morada térrea do ocupante da cadeira 38, e a segunda no cemitério da Texlom. E daqui a decolagem da viagem final até ao reino dos céus. E assim aconteceu por volta do meio-dia.
Por algum motivo fiquei em terra na primeira paragem. Esta madrugada de chuva, e que abençoara a viajem, soube dela de que a viagem correra bem e que o ocupante da cadeira 38 fora recebido com uma honrosa e estrondosa salva de palmas durante 38 segundos. No final, a saudação: Cadeira 38, Saravá!
Em jeito de homenagem a Abel Lopes Menete (16/09/1924 – 23/09/2023)
Já dissemos isso mais do que uma vez, na tentativa de não perder de vista a história de uma cidade que se tornou incapaz de preservar os ritos, e os mitos. É isso mesmo: Inhambane está caminhando de degeneração em degeneração em vários ângulos da sua existência, até o silêncio está sob ameaça, com os decibéis a triunfarem em todo o lado sem que as autoridades actuem. Mas, mesmo com essas dores todas, e ainda perante o êxodo e os fragmentos, há aqueles que permanecem para serem eles a fechar a porta. Um deles é o Devú.
Devú parece ser o último símbolo da comunidade hindú na cidade de Inhambane. Hevendo outros, provavelmente terão menor expressão numa situação em que quase todas as lojas destes asiáticos, ou descendentes deles, estão fechadas, sem qualquer sinal de que haverá reabertura das mesmas nos próximos tempos. Muitos indianos daqui zarparam em busca de outros ventos, se calhar porque a sorte lhes virou as costas numa terra omde tinham o domínio total do comércio. Ficavam à porta e o dinheiro ia lá ter.
Agora o negócio tem outras mãos e outros donos, de entre eles muitos moçambicanos que constroem lojas e bancas nos bairros residenciais, facilitando as deslocações dos consumidores à cidade. Os próprios alfaiates indianos, que eram a maior recomendação –quase única – levantaram as âncoras e içaram as velas antes que o vento parasse em definitivo de soprar.
Mas Devú ficou, como um marinheiro abandonado num barco ora robusto, porém agora navega na costa sem capacidade de ir ao ao alto mar, o casco está por demais fragilizado. Ele também tem as mãos comprometidas, tremem ao se lembrar que os remos caíram na água, matando completamente o sonho de alcançar algum porto próximo ou distante.
Seja como for, Devú não deixa de ser uma pessoa amável. Mantem o abraço afável aos seus trabalhadores que estão alí, na loja, por detrás do balcão, com muito pouco para vender, quase nada. Já não é a loja comercial que move um homem que se tornou personagem pelas suas características peculiares, mas a história que essa loja emana. Abandoná-la seria igual a abandonar-se a si próprio e desvalorizar tudo o que os seus pais fizerm. É por isso que se mantém à espera de um comboio que ele sabe muito bem que não vai chegar.
Parece - quando espreita pela porta cá para fora onde os jovens passam ignorando-o –conformado com a negligência da memória de todos nós. E alí mesmo em frente à sua loja, tem a casa de Tsungu Thsoni, e os jovens nem sequer conhecem esse nome, nunca ouviram falar de Tsungu Thsoni, nem de Devú, e Devú faz parte da nossa história, mesmo que ele não reivindique nada.
E assim a nossa cidade vai-se diluindo na perca de elementos do passado, que serão importantes para escrever sobre os acontecimentos da cidade. Então os nossos livros, sem as páginas como Devú, podem não estar completos. Ou seja, o arco-íris só é arco-iris com todas as cores.